A DEMOGRAFIA HISTÓRICA BRASILEIRA E SEUS PRÓXIMOS PASSOS: TEMA PARA UM DEBATE INADIÁVEL.


Iraci del Nero da Costa
São Paulo, março de 2006



Alguns dos trabalhos recentes desenvolvidos no Brasil no âmbito da pós-graduação estão bordejando um novo tipo de enfoque de nossa história demográfica, tal enfoque, a meu ver, levará nossos estudos a um patamar superior ao prevalecente nos dias correntes. (1)

A fim de aclarar esta minha impressão permito-me uma breve digressão sobre o caráter dos estudos históricos efetuados entre nós e, em particular, sobre as características já assumidas ou que poderão vir a ser galgadas pelos estudos concernentes à área da demografia histórica brasileira.

Em termos grosseiros, podemos estabelecer pelo menos três categorias de estudos quando pensamos em nossa demografia histórica.

Num primeiro plano, mais intimamente vinculado ao factual e muito próximo do empírico, enquadra-se a maioria dos trabalhos até hoje desenvolvidos em nossa área. Parte-se de um conjunto de fontes documentais e, com base na orientação metodológica assumida, tenta-se extrair dele o máximo de informações de caráter geral. Alternativamente, tais fontes documentais são exploradas de sorte a se realçar um ou mais aspectos demo-econômicos da vida social; neste nicho albergam-se os inúmeros artigos, teses e ensaios votados à consideração da família, dos agregados, da estrutura de posse de escravos, das distintas formas de acumulação de riqueza e composição de patrimônios etc. etc. Nesta esfera também colocar-se-iam trabalhos cujos autores se ocupassem de casos "excepcionais" como seria o estudo demográfico do episódio de Canudos ou de Palmares, para citar apenas dois casos exemplares.

Um degrau superior a esse primeiro marcar-se-á pela busca e caracterização de padrões – de regularidades – e pela procura de causas comuns a eventuais "excepcionalidades". Para esta órbita apontam os estudos recentes referidos na abertura destas notas. Havia um padrão concernente à formação de nossas vilas e municípios? Como se dava a ocupação de novas áreas em termos da afluência de proprietários de cativos? E quando ocorria retração da atividade econômica, como se dava a sustentação da vida comunal? Neste último caso, ocorria a presença de uma família e/ou personalidade dominante nela enraizada e que emprestava seu respaldo à sua continuidade, ainda que amesquinhada do ponto de vista econômico? Considerada determinada atividade econômica, evidenciava-se um número mínimo de escravos e/ou trabalhadores para nela ingressar? Enfim, respostas a questões como estas insinuam-se em teses e dissertações defendidas nos últimos tempos.

Por fim, uma terceira categoria englobará trabalhos dirigidos ao estabelecimento de uma visão explicativa global capaz de conjugar num todo orgânico coerente a formação de nossas populações, de nossa sociedade e de nossa(s) economia(s). No respeitante à nossa evolução social e econômica já contamos com avultado número de visões – neste capítulo podemos arrolar, entre outros, os nomes de M. Bonfim, G. Freire, R. C. Simonsen, Caio Prado Jr., C. Furtado, R. Faoro, S. B. de Holanda, J. Gorender, C. F. S. Cardoso, J. Fragoso e, muito modestamente, J. M. Pires e I. Costa. Já o mesmo não se pode dizer quanto à constituição de nossas populações. Como sabido, a demografia histórica ainda não se desenvolveu o bastante entre nós para chegarmos a divisar uma explicação global e original para nossa formação populacional, assim como nos falta determinar com clareza os distintos regimes demográficos que vigeram entre nós. Conquanto os vários sistemas demográficos aventados pioneiramente por Maria Luiza Marcílio (2) evidenciem a necessidade de tratarmos de tal tema, careceram, os propostos por essa mestra, de apoio empírico sólido e incontestável. De toda sorte, teremos de enfrentar tais questões a fim de chegarmos à formulação de esquemas explicativos capazes de dar conta das relações entre os vários elementos que informaram e enformaram nossa evolução demo-econômica e social.

Quando expus a assim chamada segunda categoria de estudos, referi-me tanto à passagem do tempo (desenvolvimento das localidades) como às vicissitudes defrontadas pelos escravistas. Trata-se de duas questões inter-relacionadas, mas que podem ser abordadas segundo esses dois flancos. Assim, quando se pensa no evolver das localidades não se deve considerar, tão-somente, as variações observadas na riqueza, mas, além disso, no modo (no eventual padrão) que, considerada cada "economia" do Brasil ao tempo da colônia e do império, deu forma ao desenvolvimento (e à eventual involução) das ditas comunidades. O plural é aqui empregado de maneira proposital, pois certamente teremos de analisar várias delas para chegarmos a um conjunto de elementos capaz de delinear o padrão procurado. Ao estudarmos várias localidades provavelmente poderemos isolar os aspectos peculiares – aleatórios – e determinar quais seriam os "essenciais". Assim, por exemplo, ao contemplarmos localidades que se viram dominadas pelo café, far-se-ia necessário distinguirmos, desde logo, dois grupos: um correspondente às áreas já assentadas e consolidadas e que foram engolfadas pela onda do café; outro concernente aos núcleos pioneiros. No primeiro caso poderíamos aferir como se deu o impacto da introdução da rubiácea sobre as propriedades preexistentes, sobre os proprietários, a escravaria, o comércio e sobre os preços relativos; ser-nos-ia dado verificar o perfil dos adventícios e suas características, o engajamento dos autóctones, os deslocamentos dos antigos proprietários de terras no local, o comportamento da assim chamada arraia-miúda etc. etc. Lembro aqui um caso exemplar, trata-se de uma trabalho sobre uma localidade paulista na qual se verificou que uma parte dos antigos proprietários (aqueles sem condições e/ou vontade de plantar café) viu-se efetivamente deslocada das terras melhor situadas no vale central da região; não obstante, tais pessoas não se transformaram em "excluídos", pois acomodaram-se num vale adjacente, bem menor e mais estreito do que o principal, onde estabeleceram cultivos de subsistência. Considerado o fato ora reportado, algumas das perguntas que se põem são as seguintes: em que medida tal comportamento foi generalizado? quais as características dos que ficaram na área central, dos que passaram a produzir café e dos que se deslocaram para uma área lindeira? no correr do tempo, qual o novo "equilíbrio" observado na região?

Se nos centrarmos no elemento adventício seria altamente recomendável compararmos suas características (idade, estado conjugal, número de escravos etc.) em face de duas situações distintas: 1) os que se estabeleceram como pioneiros em uma área totalmente nova e 2) os que se integraram a núcleos preexistentes. Quais as diferenças e semelhanças entre tais pessoas e seus haveres?

No caso de núcleos pioneiros também será interessante verificar qual o caminho seguido até atingirem certa estabilidade, quais os "momentos" deste evolver: chegada dos pioneiros, eventual vinda de familiares (nos núcleos que já existiam talvez os familiares acompanhassem os adventícios), estabelecimento de comércio, das vias de comunicação, do comércio de escravos, como se deu a estruturação da vida religiosa e das instituições "civis", como ocorreu a ocupação das terras em face das condições geográficas em geral e pedológicas em particular etc. etc.

Quanto ao estabelecimento da vida religiosa parece ser muito relevante a figura do doador do patrimônio da Igreja; ao que consta, geralmente havia uma família mais abastada apta e interessada em assumir tal responsabilidade (há o caso anedótico de um potentado local que, por sentir-se desautorizado pelo pároco, colocou um cadeado na Igreja e a fechou dizendo ser a Igreja dele, pois fora ele quem doara as terras para sua construção). Ademais, por via de regra, esta família passava a dominar a vida política do núcleo e se enraizava tão fortemente no local que, mesmo quando a localidade conhecia a decadência, ali permanecia aquele "clã", oferecendo, de certa forma, as condições para a continuidade do núcleo, mesmo se presa de cabal decadência. Repetiu-se tal esquema, se é que existiu? Qual seu impacto sobre a "psicologia" social? Enfim, aí pode estar um elemento não só do "coronelismo", mas da existência de um grande número de cidades (sobretudo em áreas economicamente deprimidas do Nordeste e de Minas Gerais) que hoje vivem das cestas básicas, das aposentadorias e do dinheiro enviado do exterior por emigrantes.

Conforme se observa, com base em umas poucas variáveis demográficas somos levados a uma série de problemas correlatos situados no campo vasto da história em geral. De outra parte, é preciso reconhecer o teor puramente especulativo de muitas das hipóteses tecidas acima; assim, tanto nossos coronéis como o grande latifúndio podem vir a definir-se como decorrência do período de decadência econômica, ou seja: dado o vazio econômico criado pela recessão é possível que um pequeno número de famílias começasse a açambarcar as terras, a vida econômica e política local. Também é possível que esses dois modelos tenham ocorrido, ou que um se tenha sobreposto ao outro. Enfim, do ponto de vista demográfico, sabemos pouco sobre tais processos. Para enfrentá-los teríamos – além de considerar nossos dados estatísticos e outras evidências qualitativas – de voltar aos clássicos como Victor Nunes Leal e Maria Isaura Pereira de Queiroz, só para citar dois nomes dos mais respeitáveis.

Como se vê, há um mundo de "coisas" a descobrir. Aqui só apontei algumas questões, nós poderíamos multiplicá-las. Nem sequer toquei nos problemas afetos ao ciclo de vida e à posse de escravos, uma outra vertente a ser explorada quando se toma como objeto o evolver dos núcleos populacionais de nosso passado escravista.

Este segundo patamar pode ser entendido como um desenvolvimento dos estudos até agora realizados. O novo está no fato de que os pesquisadores não mais ficarão presos imediatamente às evidências empíricas, mas procurarão encontrar o "caminho" que elas seguiram no correr do tempo de sorte a verificar se existem "caminhos" semelhantes e, neste caso, quais são, por um lado, as raízes e causas de tais semelhanças e, por outro, quais razões explicariam as eventuais divergências.

Há, pois, dois caminhos para alcançarmos este novo estágio de nossos estudos: de uma parte, poder-se-á partir de trabalhos já existentes; de outra, trabalhos desenhados desde sua formulação inicial em novas fontes e recortes possibilitarão abordagens imediatamente inovadoras.

A esta altura faz-se mister alertar que as eventuais confrontações de resultados a serem efetuadas com base em estudos já existentes não podem cingir-se a comparações perfunctórias. (3) Destas últimas podem resultar categorizações fortuitas, devidas, tão-só, a coincidências numéricas. (4) É necessário ir além da mera comparação, pois é preciso identificar elementos causais aptos a sustentarem categorizações com respaldo na realidade; impõe-se, ademais, o claro delineamento dos aludidos padrões e, quando necessário, o estudo de seu evolver histórico de sorte a documentar as mudanças por que passaram no correr do tempo e em face das alterações de ordem econômica e/ou política vivenciadas por nossa sociedade.

Seguindo nesta linha de raciocínio tomemos como exemplo um projeto simples (ora em desenvolvimento), mas que já aponta para o patamar ora em foco. Contemplemos, pois, a apresentação desse artigo no qual se pretende analisar, de uma perspectiva comparativa, as atividades produtivas e a propriedade escrava no Brasil. Reza sua introdução:


"Como parece óbvio, não é de estranhar que diferentes atividades produtivas requeiram – em decorrência de suas especificidades, do grau de especialização regional em tal ou qual produto, da escala de produção e de um eventual tamanho mínimo exigido para a planta produtiva de sorte que ela se mostre economicamente viável – quantidades diferenciadas de trabalhadores.
Assim, em princípio, no Brasil escravista, um produtor de açúcar destinado à exportação deveria ter um maior número de cativos do que um agricultor votado ao plantio de gêneros de subsistência destinados a modestos mercados locais; já um artesão mobilizaria um número menor de escravos do que um agricultor de porte mediano.
De outra banda, também é de esperar que, fixada a atividade produtiva, ocorresse, entre os escravistas que a ela se dedicavam, apreciável discrepância quanto ao número de cativos possuídos. A escala da produção e/ou dos negócios tocados, a idade e o sexo do escravista, o período de tempo transcorrido desde seu engajamento nessa específica atividade econômica, bem como as vicissitudes da vida – partilhas, heranças, dotes, doenças etc. –, todos estes elementos certamente compõem o rol explicativo da aventada divergência nas quantidades de escravos possuídos.
Pois bem, neste estudo consideraremos com base em evidências empíricas – e de maneira genérica, diga-se desde logo – as duas questões postas acima, quais sejam: a) a discrepância existente quanto ao tamanho dos plantéis quando contemplados distintos grupos de atividades produtivas ou econômicas e b) o grau de homogeneidade/heterogeneidade vigente no âmbito de cada um dos grupos de atividades analisados, sempre tendo como referência o número de escravos possuídos pelos proprietários enquadrados em cada um dos aludidos grupos de atividades econômicas. Para o primeiro caso (a) tomaremos como elemento de discriminação, tão-somente, o número médio de escravos possuídos pelos escravistas alocados em cada um dos distintos grupos de atividades. Já para o outro caso (b) servir-nos-emos, para cada grupo de atividades, de três indicadores intimamente relacionados: do desvio padrão em torno do número médio de escravos possuídos, da distribuição porcentual das escravarias possuídas segundo cinco faixas de tamanho de plantéis: 1 a 5 cativos, 6 a 12, 13 a 20, 21 a 30 e 31 e mais escravos e, por fim, do índice de Gini.
Ademais, procurando evitar que nosso exercício se veja viciado pela estreiteza de observações, efetuaremos os mesmos cômputos para um conjunto razoável de dados, temporalmente distanciados, e concernentes a localidades situadas em distintos pontos de nosso território. Assim operando procuraremos identificar eventuais regularidades na distribuição da posse escrava, segundo atividades econômicas, bem como estabelecer eventuais padrões de propriedade escrava concernentes ás referidas atividades."

Como se conclui imediatamente, este projeto, como avançado, é bem simples, embora envolva um trabalho amplo de reunião de dados. Ademais, ele poderá ser desenvolvido com dados já existentes e, eventualmente, complementado com novas coletas.

Uma particularidade altamente relevante, só indicada tangencialmente no projeto, diz respeito ao passar do tempo; assim, caso fossem tomados uns poucos núcleos, talvez fosse o caso de se acompanhar o desenvolvimento da escravaria em cada localidade de sorte a captar as causas de eventuais mudanças com relação às quais se impõem duas linhas de perquirição: de uma parte o próprio desenvolvimento da localidade, de outra, as vicissitudes defrontadas pelo grupo de escravistas.

Aqui ficam, pois, uns poucos exemplos para ilustrar o que penso do que tenho chamado de segundo patamar dos estudos demográficos entre nós.

Quanto ao terceiro e mais complexo degrau acima aventado creio não haver muito a acrescentar às palavras de artigo escrito por mim e por José Flávio Motta há alguns anos; sirvo-me delas, portanto, como fecho destas notas.

"Por outro lado, igualmente relevante parece-nos ser a retomada do estudo – agora lastreado em base empírica mais rica e, eventualmente, com visão teórica mais abrangente – dos regimes demográficos que vigoraram no passado brasileiro. Pensamos aqui, especificamente, no esforço de elaboração a ser desenvolvido no sentido de integrarmos num corpo orgânico teoricamente estruturado os avanços empíricos já alcançados quanto à formação de nossas populações. Identificar os aludidos regimes, as especificidades próprias de cada grande segmento populacional (livres, escravos e forros), as peculiaridades regionais e os condicionantes devidos às várias “economias” que se definiram no correr de nossa história é tarefa urgente na busca de generalizações que possam transcender o largo apego ao empírico que, necessariamente, distinguiu grande parte do desenvolvimento da demografia histórica entre nós. Ainda no âmbito desta preocupação com o estabelecimento de visões de mais largo alcance, parece-nos muito importante a identificação dos pontos de inflexão que, certamente, marcaram nossa formação populacional." (5)


NOTAS

(1) As considerações apresentadas neste breve artigo não desconsideram as sempre relevantes e atuais recomendações explicitadas em COSTA, 1994 e em MOTTA & COSTA, 1997.

(2) MARCÍLIO, 1980/1984.

(3) Exemplo desse tipo de comparação singela encontrar-se-á em artigo do qual sou co-autor: MOTTA, NOZOE & COSTA, 2004.

(4) Como já alertado: "panos de fundo socioeconômicos distintos podem dar suporte a populações cujas estruturas demográficas apresentam perfis estatísticos em boa medida semelhantes." MOTTA, NOZOE & COSTA, 2004, p. 209.

(5) MOTTA & COSTA, 1997, p. 156.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Iraci del Nero da. Demografia Histórica no Brasil: contribuição para o estabelecimento de um dossiê sobre avanços e desafios. BHD – Boletim de História Demográfica. São Paulo, NEHD da FEA-USP, ano I, n. 3, 1994. Disponível em  HYPERLINK "http://www.brnuede.com" http://www.brnuede.com .

MARCÍLIO, Maria Luiza. Sistemas demográficos no Brasil do século XIX. Revista de Cultura Vozes. Petrópolis, Vozes, 74(1):39-48, jan./fev. 1980. Também publicado: MARCÍLIO, Maria Luiza (org.). População e sociedade: evolução das sociedades pré-industriais. Petrópolis, Vozes, p. 193-207, 1984.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. Demografia histórica: da semeadura à colheita. Revista Brasileira de Estudos de População. São Paulo, ABEP, 14(1/2):151-158, jan./dez. 1997.
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MOTTA, José Flávio & NOZOE, Nelson & COSTA, Iraci del Nero da. Às vésperas da abolição: um estudo sobre a estrutura da posse de escravos em São Cristóvão (RJ), 1870. Revista Estudos Econômicos. São Paulo, IPE-USP, 34(1):157-213, jan./mar. 2004.
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