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UMA PLATITUDE RECONFORTANTE (1)
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, fevereiro de 2008
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Conforme avançamos em anos vemo-nos tomados por uma nostálgica sensação de que maneiras de ser, pensar, agir e sentir, características de nossa experiência infantil ou juvenil, começam a perder-se para sempre, sendo substituídas por formas novas inferiores e grosseiras. Tudo se passa como se as novas gerações perdessem a noção do belo, do superior, do refinado e se entregassem a modos de sentir e agir degradados, relegando ao esquecimento e considerando superadas "nossas" caras e queridas maneiras de ser.
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A meu ver, esta impressão que domina uma parcela das pessoas mais idosas trata-se, efetivamente, de mera aparência. As "antigas" formas de ser não estão sendo esquecidas nem superadas; estão, é certo, deixando de ser atuais: saem do cotidiano para ganhar uma nova dimensão: a histórica. Perdem a áurea de "estar na moda", não mais pertencem ao dia-a-dia, pois passam a integrar a cultura, a raiz da nação e de seu povo. As velhas formas, se superiores e requintadas, esvaem-se da atualidade para ganhar a perenidade.
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É importante, não obstante, verificar que a tal condição nova correspondem outras mudanças de fundo.
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Ao abandonarem seu caráter atual, essas formas de ser saem do palco diário de quase todas as pessoas para comporem o objeto de amor e de estudo de uns poucos, para os quais se definem como referências refinadas que ocupam espaço privilegiado em suas existências.
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Assim, o chorinho, o jazz de raiz, a velha cantiga de roda, a bossa nova (2) etc. etc. não "morreram"; apenas passaram a residir numa outra dimensão, num status cultural de novo tipo. Não correm o risco, como pensamos alguns idosos, de serem perdidos pela humanidade, pois ver-se-ão definitivamente incorporados ao acervo permanente da espécie em decorrência da atenção de seus novos devotos os quais não mais os vivenciarão como um algo da vida que "aí está", mas como uma preciosidade selecionada, escolhida para ser apreciada com intensidade plena de emoção e admiração. (3)
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Como visto, as novas gerações não perderão o passado tão querido. A uma parcela dela caberá, justamente, emprestar a devida atenção ao "velho".
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De outra parte, parece óbvio que não pretendo estabelecer uma relação de igualdade ou inferioridade do "novo" com respeito ao que deixa de ser novo. Tal observação faz-se necessária particularmente neste início de século o qual se distingue como uma quadra de notória degradação do gosto e da formação cultural das pessoas; grande parte das novas gerações perde-se num individualismo e num pragmatismo grosseiros. A cultura e o refinamento parecem postos de lado. Mas isso, tenho certeza, é passageiro; no seio dessas mesmas gerações amadurecem os frutos aos quais caberá garantir a salvaguarda e conservação para sempre das criações superiores e dignas de lembrança que viermos a produzir.
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NOTAS

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(1). Estas notas, sob o título "Uma aparência incômoda", foram escritas em meu borrador em 13 de julho de 2002, momento no qual me dei conta de como o passado não se perde e de que modo ganha um status novo.
(2). Resolvi dar a lume esta crônica por motivo da "comemoração" do cinqüentenário do movimento da bossa nova, o qual, segundo alguns, estaria esquecido. Como afirmou um dos integrantes do movimento que deu início à bossa nova, nos dias correntes participa de mais apresentações do que o fazia quando o movimento estava em seu auge; tais shows, como lembrou o depoente, não se destinam à grande massa, pois se dão num sem-número de casas de espetáculos nas quais reúnem-se os aficionados do tão decantado estilo.
(3) Justamente a esses grupos de admiradores cumpre o papel de decantar o presente, fazendo com que sejam desprezadas as manifestações menores e perpetuadas as expressões culturais substantivas de cada comunidade e época.
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