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NOTAS NÃO ORGÂNICAS SOBRE FORMAS DE EXISTÊNCIA.


IRACI DEL NERO DA COSTA


O real é o ambiente dos homens. Existimos no plano real.

Só é real o que existe para nós (para a consciência dos homens), ou seja, o que pode ser colocado como objeto para nós (para a consciência). Note-se que consciência (ou pensamento) denota consciência-e-ação, consciência+ação, consciência-ação, enfim uma totalidade: a práxis. Mesmo se a ação for inintencional, nela estará inscrita a consciência; mesmo que não se alcance o conhecimento da ação (e/ou do objeto dela) a consciência igualmente estará presente (fazem, mas não sabem). Lembre-se, ademais, que o fato de uma coisa se colocar como objeto da consciência-ação não implica seu pleno conhecimento e que "depender da consciência" não implica a presença "consciente" da consciência.

Se uma coisa "existe" mas não se colocou (foi colocada) como objeto para nós, ela não existe objetivamente, ela não é real, ela não é realidade objetiva, ela não existe no plano real. A coisa em si não existe objetivamente, o que existe objetivamente (como objeto, como nosso objeto, como objeto para nós) é a coisa para nós. É nesse sentido que o homem (a consciência) coloca, põe, o real. Neste sentido, o real, a realidade objetiva, a objetividade é um devir, um vir-a-ser. É este, a meu ver, o lado ativo da afirmação de Marx: "A falha fundamental de todo o materialismo precedente reside em que só capta o objeto (...) sob a forma de objeto ou de contemplação, não como atividade humana sensorial, como prática; não de um modo subjetivo."

Toda coisa que "existe" poderá devir, poderá ser colocada como objeto para nós. Isto significa que uma "coisa" que não puder ser colocada (não puder devir) como objeto para nós simplesmente não existe no plano do real, não existe realmente.

Consideremos a matéria: postulamos que matéria é aquilo que existe fora da consciência e dela independe; o espaço e o tempo são formas de existência da matéria e a ela vinculam-se indissociavelmente, assim não há matéria fora do espaço e do tempo, nem há espaço e tempo independentemente da matéria.

Assim, Deus é real, porém não é material, isto porque ele só "existe" na consciência e a sua "existência" depende da consciência, ou seja: se não o tivéssemos pensado ele simplesmente não "existiria", ele não seria real, porque não se definiria como objeto do pensamento. Porém, como ele já foi posto como objeto e como sempre poderá ser objeto do pensamento, ele sempre será real embora não seja e nunca possa vir-a-ser material.

Por outro lado: "esta pedra", "esta montanha", "a terra", "o universo", as relações de produção, além de reais (colocam-se como objeto do pensamento), são matéria (são materiais) porque existem e subsistem (continuarão a existir) fora da consciência e independentemente dela. Mas existem diferenças na materialidade, uma é fisicamente dada, outra é socialmente dada (apresenta-se como materialidade puramente social). A terra é fisicamente dada – ela existe fora da consciência e independentemente dela. As relações de produção são dadas socialmente, isto porque elas não existiriam (e não subsistiriam) independentemente da sociedade. As relações de produção capitalistas também são socialmente dadas. Elas existem fora da consciência (enquanto relações de produção), mas não existem independentemente da consciência (enquanto capitalistas). Daí que as relações de produção (capitalistas, feudais etc.) apresentem uma materialidade puramente social. É por isto que esta é uma matéria distinta: os homens dão a forma (capitalista etc.) a um conteúdo (relações de produção).

o conteúdo – relações de produção – é socialmente dado, e existe fora da consciência e independentemente dela.

a forma – capitalistas, feudais etc. – é socialmente dada, existe fora da consciência (enquanto "aderida" ao conteúdo) mas depende da consciência para existir e subsistir na medida em que é posta por ela.

Como conteúdo e forma são um todo solidário (são uma totalidade), estamos em face de uma materialidade puramente social. Quando afirmo que tal materialidade é puramente social estou afirmando: a) que tal matéria não pode existir e subsistir (continuar existindo) na ausência (independentemente) da sociedade e b) que tal matéria não pode existir e subsistir independentemente da consciência (responsável por sua forma).

Assim, pensar as relações de produção tout court como conteúdo é uma abstração; quando chegamos ao determinado – relações de produção de tal ou qual tipo (capitalistas, por exemplo) –, somos obrigados a pensar conteúdo e forma, daí afirmarmos que as relações de produção (capitalistas no nosso exemplo) têm uma materialidade puramente social. Adiante voltaremos a esta questão.

Do acima exposto pode-se inferir que a Existência (ou Existir) comporta várias acepções (determinações). Vejamos algumas delas.

1. Existir como real ou realmente – a coisa existe porque se coloca como objeto do conhecimento (de nossa consciência). Trata-se da realidade objetiva.

2. Existir como matéria ou materialmente e como real – a coisa existe porque se coloca (colocou ou foi colocada) como objeto do conhecimento (da consciência) – vale dizer, é real – e, além disso, existe e subsiste (continua existindo) independentemente e fora da consciência. Portanto, ela existe objetivamente (é real) e existe independentemente e fora da consciência (é material). Trata-se de um real-material, ou, se quisermos, de um material que foi posto (reproduzido) pela práxis como real (um material que veio-a-ser real).

3."Existir" como material (materialmente) sem existir como real (realmente) trata-se de um algo – note-se que o que existe objetivamente não é este algo, mas a possibilidade de existência de um algo; enfim, estamos admitindo aqui, tão-somente, que não somos oniscientes – que existe materialmente, mas que ainda não se colocou (foi colocado) como objeto do conhecimento. Esta é uma dimensão do devir: é o material que poderá vir-a-ser real. Neste sentido é um "falso" existir porque, embora exista materialmente, ainda não existe realmente. Para nós, este algo não existe (porque não é real), mas poderá vir a existir quando se colocar como objeto do conhecimento (da consciência) – quando se colocar (for colocado) objetivamente –, quando for realidade objetiva. Este algo não existe objetivamente (embora exista materialmente) e, neste sentido, sua existência é absolutamente indiferente para nós (porque ela não é real, não existe para nós). Enfim, estamos em face de um "falso" existir: este algo não existe para nós porque não existe objetivamente para nós ou porque, objetivamente, ele não existe para nós, embora possa vir a existir realmente (devir). Essa dimensão do devir coloca (passa) o material como real.

4. Existir objetivamente sem existir materialmente. Temos, aqui, dois casos; vejamo-los.

4.1. A coisa existe objetivamente (é objeto da consciência) e virá-a-ser (devirá) uma "existência" material. Isto é, virá-a-ser algo material, vale dizer: virá a existir fora da consciência e independentemente dela – enquanto conteúdo – e dela dependerá enquanto forma. É o caso do socialismo (como projeto) que existe realmente, existe objetivamente, é realidade objetiva ainda não materializada, pois sua materialização depende da ação dos homens (guiada pela consciência). Esta é outra dimensão do devir. Esta coisa virá-a-ser, virá a existir, materialmente porque o agir dos homens (guiado pela consciência) a fará "passar" do real (da existência objetiva) ao material (à existência fora da consciência e dela independente -- enquanto conteúdo -- e dela dependente, enquanto forma).

Esta dimensão do devir coloca (passa) o real como material; trata-se, como visto, de uma materialidade puramente social.

4.2. A coisa existe objetivamente (é objeto da consciência) e não virá-a-ser (não devirá) uma "existência" material. Ela é objeto da consciência (é real, é realidade objetiva), porém não existe e não existirá (não pode existir) fora da consciência e independentemente dela. Trata-se de um real-ideal, de uma realidade objetiva ideal. Deus é real, só que é um real-ideal, isto porque ele não existe (nem virá-a-ser, nem devirá) materialmente. Ele não existe (nem devirá) fora da consciência e independentemente dela. Sob esta forma de existência enquadram-se, ainda, as relações entre coisas (igualdade, dessemelhança, "o dobro", "a metade" etc.) e os elementos matemáticos (ponto, linha, círculo, os números, as raízes, as razões, as proporções, exponenciais, diferenciais, integrais etc); o círculo, por exemplo, trata-se de um objeto ideal, mas que se impõem a nós, eu não posso falar o que quiser do circulo, como posso fazer, por exemplo, com respeito a um animal mitológico ou a uma personagem de um romance. Mais ainda, tais objetos colocam-se fora do tempo, e são como que achados (descobertos) pela mente, vale dizer: se a humanidade deixasse de existir, uma nova humanidade voltaria a "descobrir" tais objetos. Ao que parece define-se, assim, uma região do campo do real integrada por objetos que têm uma EXISTÊNCIA LATENTE, ou seja, eles se "explicitam" quando postos ("descobertos", "reconhecidos") pelo pensamento; sua existência é latente porque, como avançado, tais objetos e suas propriedades só se revelam quando pensados, quando "achados-gerados" pela consciência. De toda sorte, tais objetos, colocados fora do tempo, não existem fora e independentemente da consciência; não têm e nunca terão existência material.

Estamos em face, pois, de distintas "formas" de existência. Recordemo-las:

1. EXISTÊNCIA PLENA. Existe como realidade objetiva e existe como matéria.

2. EXISTÊNCIA QUASE-PLENA. Existe como realidade objetiva e virá a existir como matéria (como matéria puramente social). Devirá, virá-a-ser existência plena.

3. EXISTÊNCIA INDIFERENTE. Existe como matéria e virá (poderá vir) a existir como realidade objetiva. Devirá, virá-a-ser ou poderá vir-a-ser existência plena.

4. NÃO-EXISTÊNCIA PLENA. Existe como realidade objetiva e não existirá como matéria. Trata-se de uma realidade objetiva ideal. Não devirá, não virá-a-ser existência plena. Sob esta forma alberga-se, também, a EXISTÊNCIA LATENTE.

O processo do vir-a-ser, do devir, promove, pois, um contínuo alargamento da existência plena, ou do que se poderia chamar "campo do real-e-material". Vejamos em termos esquemáticos e gráficos a representação de tais "existências", "campos" e "processos".



ALARGAMENTO DO CAMPO DO REAL-E-MATERIAL




É preciso estudar a dialética dessas existências, é preciso estudar as relações entre essas formas de existência. Atenhamo-nos, a alguns exemplos.

1. Penso, aqui, no processo do conhecimento. Admitamos, para fins de desenvolvimento do raciocínio, que a partícula X é material, mas que ainda não a verificamos como material porque só a sabemos como real uma vez que ela foi inferida matematicamente pelos físicos. Trata-se, pois, de uma falsa existência plena, isto porque tal partícula é material, é real, mas ainda não é material e real. Isto é, a sua materialidade ainda não tem um caráter real e a sua realidade ainda não tem um caráter material.

Ou seja, ela é material, mas nós ainda não a colocamos, enquanto tal (a partir dela enquanto material), como objeto de nosso conhecimento (como real). Nós a colocamos como real a partir da inferência lógica. Nós temos de "procurá-la" como material para sabermos que não se trata de um real-ideal.

Em suma, tal partícula impõe-nos o que podemos chamar Falsa Existência Plena: é material, mas nós não a sabemos como tal, pois apenas admitimos sua materialidade; é real, mas nós não sabemos se se trata de um real-ideal.

Das duas uma, a Falsa Existência Plena devirá: Existência Plena, se verificarmos sua materialidade; Não-Existência Plena, se verificarmos sua não materialidade concluindo, pois, por sua "idealidade".

Ademais, na medida em que a Falsa Existência Plena existe (ainda que apenas potencialmente), ela representa mais uma forma, mais uma dimensão, da Existência. Isto nos leva a pensar nas coisas que são inferidas logicamente, consideremos, pois, o caso dessas coisas.

2. Sempre que a coisa é inferida logicamente (ela existe objetivamente, é real) nós poderemos nos deparar com os seguintes casos (possibilidades):

a. Ela existe materialmente, mas nós ainda não a sabemos como material. Se nós verificarmos sua materialidade, então ela será material e real (existência plena). Note-se que não estamos a tratar com a existência indiferente, pois na existência indiferente a coisa devirá como real a partir de sua materialidade, ela se imporá a nós como um cometa absolutamente desconhecido que cai sobre nossa cabeça.

b. Ela não existe materialmente, isto é ela não se verifica materialmente. Neste caso teremos um real-ideal; trata-se, pois, da não-existência plena.

c. Ela ainda não existe materialmente porque nós ainda não a pusemos como matéria (matéria puramente social); estamos em face, pois, da existência quase-plena.

3. A materialidade física tem uma só determinação para conteúdo e forma (conteúdo-forma). Assim, conteúdo e forma existem fora da consciência e independentemente dela.

Já a materialidade social é mais determinada, existem duas determinações para conteúdo-forma. A primeira refere-se ao conteúdo e existe fora da consciência e dela independe. Assim, as relações de produção representam o conteúdo das relações de produção determinadas (isto é, feudais, capitalistas etc.). A segunda determinação refere-se à forma, a qual depende da consciência (vale dizer, da ação dos homens). Assim, ainda que os homens responsáveis por sua instituição não o saibam, o caráter (a forma) feudal, capitalista etc. das relações de produção determinadas dependem da consciência.

Como conteúdo-forma é uma totalidade, as relações de produção capitalistas, enquanto relações de produção, existem fora da consciência e dela independem, mas, enquanto capitalistas, embora existam fora da consciência, dela dependem.

A materialidade social é distinta da física porque não independe da existência da sociedade; vale dizer, as relações de produção não existiriam e não subsistiriam (continuariam a existir) na ausência da sociedade (isto, de resto, parece óbvio). De outra parte, como se trata de uma materialidade puramente social, define-se outra diferença: enquanto o conteúdo é dado fora da consciência e independentemente dela, a forma existe fora da consciência (enquanto "aderida" ao conteúdo), mas dela depende, ou seja: a forma é posta (criada) pela consciência.

Enfim, os homens não podem "fugir" às relações, mas podem determinar – e, no limite, decidir – que tipo de relações manterão.

Há, aqui, uma outra diferença a assinalar. No mundo material físico, a forma e o conteúdo nos são dados, resta-nos, tão-somente, mudar a forma como a matéria se apresenta. No mundo material social apenas o conteúdo é dado, o homem não muda a forma, mas põe, cria, produz, a forma. Esta é uma das dimensões da afirmação de que o homem é um ser ontocriativo. Assim, na materialidade social estará sempre inscrita a presença da vontade (da consciência, ou do espírito caso se queira) dos homens.

É preciso considerar, ademais, que aquilo que existe realmente, porém ainda não tem existência material, não virá a existir materialmente no sentido físico. Sua materialidade será socialmente dada (ou puramente social) porque não independe da sociedade.

O homem – o qual, aliás, já se define como produto da sociedade – não pode criar matéria a não ser matéria puramente social; ou, dito de maneira afirmativa: a matéria criada pelo homem tem uma materialidade puramente social.



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