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DEMOGRAFIA HISTÓRICA: ALGUMAS OBSERVAÇÕES

Para Tito, amigo inesquecível.
Iraci del Nero da Costa



1. Por uma definição de demografia histórica.

Ao propormos uma definição para a demografia histórica visamos, tão somente, a contribuir para o debate sobre o tema, estimulando, desta forma, a reflexão sobre o caráter que este ramo do conhecimento assumiu entre nós. Ademais, justamente por esperarmos que nossa proposição desperte críticas e suscite polêmicas, não nos deteremos em explicá-la ou justificá-la; vejamo-la.

A demografia histórica, que tem como objeto precípuo de estudo as populações humanas do período pré-censitário (o qual engloba os períodos pré e proto-estatísticos), é o campo da Ciência Social que, estabelecendo, in totum ou parcialmente, o estado e os movimentos daquelas populações, procura identificar as causas e consequências de tais fenômenos, bem como explicitar as inter-relações, destes, com outros elementos da vida em sociedade. Para tanto, lança mão, também, das técnicas e dos conhecimentos das demais ciências e desenvolve técnicas e modelos próprios, utilizando, além dos dados tradicionalmente considerados pela demografia, todas e quaisquer fontes que possam servir ao seu escopo. Presentes estas fontes e aquelas técnicas e modelos, a demografia histórica estende-se ao período censitário. Cumpre observar, ademais, que os resultados propiciados pela demografia histórica não se limitam ao campo estrito dos fenômenos tidos como puramente demográficos, pois também dizem respeito aos demais campos da Ciência Social.

2. Breves considerações sobre o conceito "demografia histórica".

Neste tópico, que não tem caráter exaustivo nem se pretende original, teço algumas considerações sobre o conteúdo da expressão "demografia histórica" a partir das características concretas que ela assumiu entre nós brasileiros e latino-americanos em geral.

Postulo, desde logo, que os dois termos dessa expressão – "demografia" e "histórica" – condicionam-se reciprocamente de sorte a exprimirem um todo orgânico, uno, que representa uma área delimitada do conhecimento da vida social. Atenhamo-nos, pois, ao relacionamento entre esses dois elementos ressonantes.

São duas as dimensões do "histórico" que qualificam o "demográfico". Assim, para estabelecermos o conhecimento do comportamento pretérito das variáveis demográficas é preciso, obviamente, determinar os valores que elas assumiram no passado. Ora, para fazê-lo nos vemos em face da necessidade de trabalharmos com técnicas especialmente desenhadas para levantar informações concernentes ao período pré-estatístico, vale dizer, temos de nos servir de fontes primárias não convencionais – quando pensadas em termos dos modernos levantamentos censitários – mediante as quais, indiretamente e depois de submetê-las a tratamento adequado, chega-se à determinação dos valores indispensáveis aos estudos demográficos. Como sabido, além das práticas que utilizamos como pesquisadores em nosso dia a dia, o método de reconstituição de famílias é exemplo palmar de técnica especificamente elaborada para o tratamento de fontes aparentemente limitadas. Impõe-se, ademais, já no terreno da demografia formal, o desenvolvimento ou o aproveitamento de técnicas e modelos estatísticos aptos a extrair informações estatisticamente significativas de material incompleto e/ou precário quando visto sob a ótica das técnicas estatísticas convencionalmente empregadas pelos demógrafos. Exemplos destes últimos procedimentos são dados no Manual X da ONU (Indirect techniques for demographic estimation) e, em escala modestíssima, pelos cálculos para datação de listas nominativas formulados por mim e por Nelson Nozoe. Uma segunda qualificação devida ao "histórico" está no fato de que não nos basta, aos demógrafos historiadores, o conhecimento do comportamento demográfico das populações pretéritas, pois, após estabelecê-lo, perguntamo-nos imediatamente: quais os condicionantes de tal comportamento, quais são suas causas e consequências? Ao procurarmos resposta para tal questionamento encontramo-nos, sabemo-lo à farta, no campo próprio do historiador; vemo-nos, assim, obrigados a buscar na história – bem como em outros departamentos da Ciência Social – os fatores capazes de explicar, além das determinações puramente biológicas, os resultados revelados pela análise quantitativa das evidências empíricas.

De outra parte, a "demografia" impõe-se à "história"; neste caso, como no anterior, é possível distinguir imediatamente duas dimensões do "demográfico" que sujeitam o "histórico", vejamo-las. Um primeiro condicionante é dado pelo fato de que nosso interesse precípuo está em determinar o estado e a dinâmica de nossas populações pretéritas, ou seja, votamos nossos esforços, primariamente, para o conhecimento do comportamento demográfico dos grupos e/ou segmentos sociais que conformaram nossa população. Tais elementos, puramente demográficos, aparecem, pois, na raiz de nossas preocupações e iluminam nosso campo de estudo. Destarte, não perguntamos, genericamente, pelo passado, interessa-nos, sim, um específico passado: o passado de nossa população, seu comportamento demográfico, sua formação no correr do tempo. Um segundo condicionante concerne à própria perspectiva segundo a qual miramos tal passado; ao fazê-lo, privilegiamos o comportamento demográfico por entendermos que ele exprime as vicissitudes de ordem econômica, política e social defrontadas pelas populações pretéritas. Ou seja, segundo pensamos, os fatos demográficos trazem impressos em si mesmos, além das resultantes de sua própria especificidade enquanto fenômeno biológico, os sucessos vivenciados pela comunidade humana da qual são expressão; permitimo-nos assim, em larga medida e repudiando todas as formas de automatismo absoluto e determinismos mecânicos, ver e entender a história de dada sociedade à luz do comportamento demográfico que ela revela no passar do tempo.

Como avançado, o conceito "demografia histórica" traz em si elementos que se condicionam mutuamente e que se definem como partes inter-relacionadas e solidárias de uma mesma totalidade. Fica visto, ademais, que a demografia histórica, por privilegiar determinados elementos, não esgota, enquanto ramo do conhecimento, a vida social, embora abarque uma larga fatia dela.

Dentre as perguntas suscitadas pelas afirmações acima postas ressaltam três, vejamo-las.

Todos os trabalhos de demografia histórica apresentam todos os predicados discriminados no corpo deste artigo? A resposta a tal questionamento é não; os trabalhos efetuados em nosso campo de especialização não têm de, necessariamente, cobrir toda a gama de problemas abarcados pela demografia histórica, podendo, no limite, restringir-se a apenas um aspecto histórico-demográfico, o estudo da nupcialidade em tal ou qual paróquia, por exemplo. O que importa, a meu juízo, é que o conjunto dos trabalhos desenvolvidos em nossa área cobre exaustivamente o terreno acima identificado.

Os demógrafos historiadores têm de ter consciência dos elementos aqui tratados? Evidentemente a resposta a tal pergunta é não; não só não é necessário que os pesquisadores tenham consciência absoluta das questões, processos e mesmo dos procedimentos e técnicas próprios de sua área, como, em alguns casos, pode ocorrer o fato de um estudioso desenvolver, inconscientemente, trabalhos muito relevantes para um dado ramo do conhecimento, a demografia histórica no nosso caso. Acolher no seio de nossos grupos de pesquisa e de debates o maior número possível dos que, direta ou indiretamente, conscientemente ou não, contribuem para o avanço da demografia histórica revelar-se-á, a meu juízo, muito proveitoso para todos nós.

Ademais, permanecerão áreas cinzentas em nosso campo de especialização? Sim, por mais refinada que seja a delimitação de nossa área de interesse, por mais sofisticada que seja a formação dos cientistas votados ao estudo da vida em sociedade sempre existirão zonas lindeiras "acinzentadas", fronteiras móveis, indefinidas, e, felizmente, espíritos irrequietos que não se amoldam docilmente a esquemas preestabelecidos.

3. A demografia histórica como capítulo da demografia e dimensão da história.

No item anterior, teci alguns comentários sobre o conteúdo da expressão demografia histórica a partir das características concretas que ela assumiu entre nós. Interessava-me, naquela oportunidade, explicitar como os dois termos da expressão – demografia e histórica – condicionam-se reciprocamente de sorte a exprimirem um todo orgânico, uno, que, evidentemente sem esgotar a realidade social, representa uma área bem delimitada do conhecimento da vida social. Ative-me, pois, ali, à discussão do relacionamento entre esses dois elementos ressonantes. Volto-me, agora, para outro aspecto da assim chamada demografia histórica, como querem alguns, ou história demográfica, como desejam outros – interessa-me a "filiação" deste ramo do conhecimento. É ele um apêndice da História? Representa uma projeção da Demografia sobre o passado? Ou se trata de um campo mais ou menos híbrido decorrente da reunião, conjugação ou "encontro" da Demografia com a História? Enfim, como enquadrá-lo no conjunto do saber científico? Vejamos, pois, minha opinião.

Em termos estritos (stricto sensu), a demografia define-se como o campo do conhecimento que, baseado em dados fornecidos por registros e recenseamentos e com aplicação de métodos e técnicas estatísticas, corresponde ao estudo quantitativo de populações humanas com vistas a identificar o estado (estrutura) e o movimento (dinâmica) de tais populações. Por outro lado, na medida em que se investigam as causas e consequências do estado e do movimento das populações introduz-se o elemento qualitativo, o qual complementa o estudo quantitativo com base na incorporação de conhecimentos hauridos nas demais ciências sociais. Esta dimensão qualitativa distingue a concepção mais larga (lato sensu) da demografia, a qual, pois, além do aludido núcleo quantitativo, apresenta um corpo "qualitativo" no qual estão presentes conhecimentos propiciados pelos demais campos da Ciência Social.

A demografia histórica, por seu turno, também traz implícitas estas duas dimensões. Em termos restritos implica o estudo quantitativo das populações do passado para as quais não dispomos de recenseamentos concebidos segundo as modernas técnicas de levantamento populacional. Os dados colhidos no passado ou gerados por técnicas hodiernas que se oferecem aos demógrafos historiadores referem-se, pois, aos períodos pré e proto-estatísticos. É a esta condição que se refere a qualificação "histórica" do termo "demografia histórica", não prendendo-se, portanto, tal qualificativo, a um "encontro" entre Demografia e História.
Segundo sua acepção mais ampla a demografia histórica compreende, também, a busca das causas e consequências da estrutura e da dinâmica das aludidas populações pretéritas. Ainda neste caso não estamos a pensar numa pretensa conjugação entre Demografia e História, pois se trata, efetivamente, da complementação do estudo quantitativo das populações do passado com base em conhecimentos fornecidos por todas as ciências sociais que se debruçam sobre o passado, dentre as quais, evidentemente, a História distingue-se com relevância capital.

A demografia histórica integra-se, pois, imediatamente, à Demografia representando um enriquecimento desta última na medida em que, do ponto de vista quantitativo, estende o conhecimento demográfico para os períodos pré e proto-censitários e na medida em que, do ponto de vista qualitativo, incorpora novos subsídios para o entendimento dos processos vivenciados pelas populações de períodos mais recentes.

Já com respeito à história e às demais ciências sociais, a demografia histórica vê-se mediatizada pela prioridade que empresta ao elemento populacional ou, em termos mais lassos: pela consideração preeminente que concede a uma ou mais variáveis populacionais. É-nos permitido concluir, portanto, que a demografia histórica é, a um tempo, parte integrante e orgânica da Demografia e uma das dimensões da História.

4. Demografia histórica ou história demográfica?

No tópico acima, opinei sobre a questão da "filiação" da demografia histórica, vale dizer, procurei responder à seguinte indagação: a que ciência(s) poder-se-ia vincular o campo de conhecimento compreendido pela "demografia histórica", como apraz a alguns, ou "história demográfica", como preferem outros? A argumentação ali expendida levou-me a concluir que a demografia histórica (ou história demográfica) é, concomitantemente, parte integrante e orgânica da Demografia e uma das dimensões da História. Tal conclusão leva-me, agora, a discorrer sobre as duas denominações que têm servido, no Brasil, para denotar o aludido campo e que vão indicadas acima: "demografia histórica" e "história demográfica".

Como sabemos, a denominação original, clássica e internacionalmente adotada para nossa área de conhecimento é a que lhe emprestaram seus fundadores: demografia histórica. Não obstante seu emprego corrente por todos os pesquisadores brasileiros, alguns deles sentiram-se incomodados com a preeminência que tal nome dá ao aspecto demográfico. Isto porque, no Brasil, verificam-se dois fatos dignos de nota. Consideremo-los, inda que em termos taquigráficos.

Lembre-se, em primeiro, que os estudos realizados em nossa área, até mesmo como decorrência da impossibilidade de empregarmos imediata e plenamente o método da reconstituição de famílias, marcaram-se desde seu nascedouro por apresentarem "muito de história" e "pouco de demografia"; referência esta devida à verificação de que nossos estudos, assim como a própria formação de nossos pesquisadores, ainda são relativamente pobres no que tange aos conhecimentos e técnicas propiciados pela demografia formal. Observe-se, em segundo, e caminhando na mesma direção do primeiro aspecto aventado acima, que ocorreu entre nós o assim chamado "transbordamento" temático, vale dizer, nossos trabalhos projetaram-se nos mais variados campos e problemáticas enfrentados pela História, indo muito além, portanto, do que se poderia esperar de estudos "estritamente" demográficos. Evidentemente, tal transbordamento – dos mais auspiciosos e estimulantes, diga-se desde logo – deveu-se, em larga medida, ao fato de ainda não contarmos com uma historiografia rica e diversificada como a dos Europeus; assim, contrariamente ao que se verifica aqui, contam eles com várias "versões" de sua história e os campos e temas pesquisados cobrem os mais distintos aspectos da vivência de seus povos no campo social, político, econômico etc. etc.

Destarte, como avançado, alguns demógrafos historiadores brasileiros procuraram uma denominação alternativa à clássica para designar mais fidedignamente o que se fez e se faz entre nós na área de estudos que abraçamos. A nova designação deveria mostrar-se, portanto, menos "impregnada" pela "demografia" e mais "embebida" de história de sorte a alcançar a pretendida fidedignidade. Escolhemos, pois, a denominação "história demográfica". Com tal designação pretendeu-se emprestar ao conceito uma acepção mais larga de sorte que ele também abarcasse o que poderíamos chamar de "estudos de população", "estudos populacionais" ou "estudos sobre a população", estudos estes que estariam menos comprometidos com a "demografia formal" e seus métodos. Alguns de nós chegamos mesmo a dizer: "Nossos estudos são mais de história demográfica do que de demografia histórica". Sinceramente, e na condição de um dos que adotaram tal terminologia, acho que tal escolha revela-se, a rigor, absolutamente inócua. E isto por duas razões, vejamo-las.

De um lado, como avançado, o campo coberto pela demografia é dos mais amplos e engloba, também, a própria demografia histórica a qual, por seu turno, não se limita à aplicação de um conjunto de técnicas matemáticas a dados concernentes ao passado, mas – como de resto a própria demografia tout court – lança indagações sobre as causas e consequências dos comportamentos estritamente demográficos por nós identificados. Assim, não há qualquer limitação que se possa impor ao uso da designação Demografia Histórica para exprimir em sua inteireza as pesquisas que desenvolvemos.

De outra parte, a denominação História Demográfica exprime a idéia de uma "história" que se quer "demográfica" estando, portanto, tão "comprometida" com a demografia, e a demografia formal em particular, como sua irmã gêmea "demografia histórica" com a qual, de fato, sinonimiza.

A meu ver, portanto, podemos identificar o campo de conhecimento em tela indiferentemente como Demografia Histórica ou como História Demográfica, pois tais denominações expressam as duas faces de um mesmo objeto. Assim, se o chamarmos Demografia Histórica estaremos a realçar o fato de ele definir-se como parte integrante da Demografia; por outro lado, se o denominarmos História Demográfica estaremos emprestando ênfase a sua outra face, qual seja a de ser uma das dimensões da História.

5. História Demográfica: uma breve visão de seu evolver.

A análise demográfica e os estudos populacionais foram amplamente impulsionados depois da segunda grande guerra mundial; este desenvolvimento relativamente recente deve-se a vários fatores.

Em primeiro lugar, ao avanço e universalização das técnicas e métodos de medida; primeiro no que diz respeito ao instrumental teórico – desenvolvimento da demografia pura ou formal – e, também, com o aperfeiçoamento tecnológico ligado à computação.

A tais elementos devemos somar o crescente interesse dos cientistas sociais pela construção de modelos explicativos matemáticos inspirados nos das ciências físicas.

Há ainda a considerar os problemas advindos da emergência do terceiro mundo; característica dos países subdesenvolvidos, a explosão demográfica, levou os estudos populacionais para o centro das preocupações dos estudiosos do crescimento econômico. Igual relevância foi dada ao processo de "envelhecimento" das populações dos países mais desenvolvidos. Paradoxalmente, defrontam-se estes últimos com situação oposta àquela dos países subdesenvolvidos. Em artigo recente, publicado na revista francesa Le Point, podemos ler: "... a realidade é que estão nascendo cada vez menos crianças... e não se trata de uma atitude isolada, mas de um comportamento global que se verifica tanto em Los Angeles quanto em Vladivostock; de um lado, a população mundial cresce sem parar. Mas, ao mesmo tempo, a participação dos países desenvolvidos decresce gradualmente: 28,6% em 1912, 23% em 1940, 19,4% em 1950, 15,7% em 1960 e apenas 12% em 1973. A França tem hoje mais de 52 milhões de habitantes mas se nada puder ser mudado, os especialistas calculam que não totalizará mais de 45 milhões daqui a 50 anos e cerca de 17 milhões dentro de 125 anos. E o mesmo vai acontecer em outros paises europeus, na Austrália, nos EUA e no Canadá." (1)

Por fim, não se pode esquecer a ação governamental, cada vez mais ampla, no sentido de planejar o crescimento econômico e orientar a atividade produtiva de forma a evitar as tensões sociais decorrentes do desemprego e das crises de super-produção. A política econômica supõe prévia avaliação do material humano destinado a implementá-la; política de investimento supõe política de mão de obra e, esta última, conhecimento da população e política populacional. A política social deve necessariamente adaptar-se à estrutura populacional e à evolução prevista desta estrutura.

Destarte, o desenvolvimento de novas técnicas e métodos de análise para o tratamento dos dados e resultados aparece como resposta aos problemas cruciais colocados pela história recente da humanidade. Neste quadro cabe à demografia novo papel; aparece como entroncamento de várias ciências e não como ramo especial, como preocupação constante e não como anexo secundário e distinto do conjunto das ciências humanas.

O desenvolvimento da demografia histórica ocorre no âmbito desse quadro geral. Na década dos 40 do século passado surge ainda como ramo da história; em 1945 Adolphe Landry dizia existir uma demografia histórica que fazia parte da história geral como a história política, a história militar etc. Em 1950 Marcel Reinhard verificava o hiato existente entre História e Demografia ao afirmar que as obras clássicas de História e Demografia apresentavam a curiosa particularidade de se ignorarem mutuamente. No entanto, graças aos esforços de historiadores e demógrafos historiadores franceses, seguidos por outros estudiosos europeus, estreitaram-se os laços entre história e demografia, ao ponto de podermos hoje repetir com M. Reinhard: "a demografia é mais que informação complementar ... ela. é uma dimensão da história". (2)

Um grande esforço de elaboração teórica e de pesquisa sobre fontes de dados e métodos de trabalho foi exigido para que a demografia histórica pudesse aparecer como disciplina madura. Foi preciso romper, antes de mais nada, com o que Fernand Braudel chamou de "explicação imperialista, unilateral, da realidade social". Exemplo da atitude exclusivista – típica das "ciências jovens" – pode ser colhido na obra de Ernest Wagemann, economista e demógrafo. Para este autor a população comanda a economia e, por decorrência, a demografia comanda a história econômica. Afirma E. Wagemann: "Uma das teses preferidas da economia política de vulgarização, é que o crescimento populacional moderno deve ser atribuído ao sucesso do capitalismo em rápida expansão. Sem dúvida, aqueles que sustentam o contrário -- diz o autor -- têm mais razão ainda, ou seja, que os progressos técnicos e econômicos dos séculos XIX e XX devem ser atribuídos ao rápido aumento populacional." (3)

Tal concepção, como bem lembra F. Braudel, não é peculiar aos demógrafos: "O economista – afirma este autor – distingue as estruturas econômicas e toma como dadas as estruturas não econômicas que as rodeiam, suportam e compelem... ao fazê-lo o economista reconstruiu o quebra-cabeças à sua maneira. O demógrafo opera da mesma forma, pretendendo tudo controlar e até alcançar explicações graças unicamente a seus critérios. Possui seus próprios testes operacionais, habituais, e eles hão de bastar para captar ao homem em sua totalidade", e, concluindo, afirma: "toda ciência social é imperialista até mesmo quando nega sê-lo; tende a apresentar suas conclusões particulares como se fora uma visão global do homem." (4)

Como fica evidenciado, o exclusivismo de cada ciência social não está no simples fato de pretender cada uma delas, como central, ser englobadora das demais; revela-se quando, mesmo reconhecendo-se como parte do todo que a supera, uma específica ciência social, dentro dos seus quadros conceituais e tão somente em seus limites, pretende nos oferecer uma visão global do homem, ou, o que é pior, pretende que o particular objeto de seu estudo possa explicar-se inteiramente nos estreitos limites de seu quadro conceitual próprio.

A nosso ver, romper com o "imperialismo" é reconhecer que o homem se nos apresenta como um ente polifacético; que os seus móveis têm raízes distintas, por vezes conflitantes; abarcá-lo, significa aceitar suas mil formas, a maioria das quais foge ao singular quadro conceitual de nossas particulares ciências. Romper com a visão estreita que denunciamos, significa aceitar as explicações oferecidas pelas várias ciências para o mesmo objeto, como elementos complementares e não mutuamente exclusivos.

Pode-se afirmar que a própria existência da demografia histórica, enquanto disciplina, é prova da possibilidade de superação de visões restritivas. Como os demais estudiosos da sociedade, reconhecem os demógrafos historiadores, a verdade das palavras de Kingsley Davis: "A fertilidade, a mortalidade e as migrações são em grande parte determinadas socialmente e são, por sua vez, determinantes sociais. Elas são as variáveis internas ou formais do sistema demográfico enquanto que, as variáveis externas ou últimas são sociológicas e biológicas. Sempre que o demógrafo aprofunda suas investigações até o ponto de perguntar-se por que os processos demográficos se desenvolvem da forma como o fazem, penetra no campo do social." (5)

Tomemos dois exemplos do que acabamos de afirmar. O primeiro trata da interdependência entre os fenômenos econômicos e demográficos em suas linhas mais gerais; no segundo pretendemos ilustrar a complexidade das relações entre os fatos econômicos, biológicos e institucionais, tomando um problema específico, qual seja, o tempo de atividade produtiva do homem.

Tem-se repetido várias vezes que os três tipos básicos de organização econômica – caça, agricultura e indústria – são acompanhados por três correspondentes variações dos níveis econômicos e demográficos em que as sociedades humanas se movem. Sem privilegiar qualquer dos dois elementos pode-se mostrar, dentro de limites amplos e destituídos de determinismo fatalista, como o econômico e o demográfico apresentam-se solidários em cada uma das grandes etapas em que se pode dividir a história humana.

A separar cada fase aparece profunda ruptura da história da humanidade: a revolução agrícola do oitavo milênio a. C. e a Revolução Industrial do século XVIII. Segundo Carlo Cipolla tais eventos criaram profundas quebras na continuidade do processo histórico. Em cada uma destas Revoluções começa nova história; dramática e completamente alheia à que a precedeu. Quebrou-se a continuidade entre o homem das cavernas e os construtores das pirâmides, tal como se quebrou entre o antigo lavrador e o moderno operador de uma central elétrica. (6)

Ao período da caça e coleta, de extrema dependência das condições ecológicas (clima, abundância ou escassez de caça e/ou frutos silvestres etc.), correspondia uma densidade demográfica baixa com amplas variações no espaço e no tempo. Os elevados índices de natalidade e de mortalidade viam-se acompanhados por curta duração da vida média.

Seria interessante e elucidativo tomarmos exemplos numéricos referentes à evolução populacional do Brasil; o que infelizmente não nos é possível fazer dado o fato de estar a demografia histórica, no Brasil, ainda em seu nascedouro.

Pela análise de 187 europeus do grupo Neanderthal verificou-se que mais de um terço morreu antes de atingir a idade de vinte anos e a maior parte dos outros morreu entre a idade dos vinte e quarenta anos. Para além deste limite só se encontraram 16 indivíduos, a maior parte dos quais morreu entre os quarenta e os cinquenta anos. O estudo de 38 indivíduos pertencentes ao grupo Sinanthropus asiático (muito anteriores ao do Neanderthal) confirmou substancialmente os resultados acima apontados. Dos 38 foi possível calcular, para 22, a idade provável ao morrerem; destes, 15 morreram com menos de catorze anos, 3 morreram entre os quinze e os vinte e nove, 3 entre os quarenta e cinquenta e somente 1 parece ter sobrevivido para além dos cinquenta. Observe-se, trata-se tão somente de restos de adultos que chegaram até nós dos tempos paleolíticos.

Nas sociedades agrícolas predominaram altos índices de natalidade e mortalidade – 35 a 50 por mil para nascimentos, 30 a 40 por mil para óbitos. A prevalecer estes índices teríamos um crescimento anual de 0,5 a 1,0%, bastante significativo e que nos legaria um "estoque" populacional enorme; tal não aconteceu porque, no decorrer da história demográfica das sociedades agrícolas, os índices de mortalidade revelaram notável tendência para atingir, frequentemente, níveis dramáticos de 150, 300 e até 500 por mil. Em certas ocasiões estes níveis coincidiram com guerras, mas, com muito mais frequência, resultaram de epidemias e de fomes que aniquilaram grande parte da população existente. De mil recém-nascidos, 200 a 500 morriam, como norma, ao primeiro ano de vida. Muitos dos que sobreviviam não lograram transpor os sete anos. A esperança de vida, ao nascer, colocava-se entre os vinte e vinte e cinco anos. Os que conseguiam alcançar a idade dos cinco anos tinham baixa probabilidade de sobreviver para além dos cinquenta.

A Revolução Industrial – acompanhada pela segunda revolução demográfica – vai provocar nova mudança drástica no quadro geral. Desaparecem as explosões recorrentes do índice de mortalidade. Novos conhecimentos das plantas e do gado – acompanhados de novas técnicas de plantio e pastoreio – melhoria nos transportes, progressos na medicina e na profilaxia sanitária, tudo isto contribuiu para permitir ao homem debelar as fomes e as doenças epidêmicas.

A revolução industrial, causa e consequência das revoluções agrícola e demográfica, também apresentou certos ganhos no que Alfred Sauvy chama de "morte natural", isto é, no índice de mortalidade em tempos normais. Os progressos da medicina, a melhor nutrição, os mais altos níveis de renda eliminaram praticamente muitas doenças e reduziram a incidência de outras. O índice de mortalidade "normal" foi reduzido e nas sociedades industriais tende a ser inferior a 15 por mil.

O mais importante componente na queda do índice de mortalidade tem sido, geralmente, a drástica redução da mortalidade infantil. Hoje, nas sociedades industriais, a mortalidade infantil mostra-se inferior a 10 óbitos por mil nascimentos. Nestas sociedades a expectativa de vida ao nascer tende para mais de setenta e cinco anos. Por outro lado há a tendência generalizada de cair a taxa de natalidade – em sociedades industriais essa taxa tende a ser inferior a 15 por mil habitantes.

Nos países subdesenvolvidos ocorreu fenômeno sui generis. Na Europa a medicina evoluiu lentamente e o crescimento da população manteve-se, por consequência, gradual. Nos países não desenvolvidos o saber acumulado de dois séculos pôde imediatamente entrar em ação e, por conseguinte, as taxas de mortalidade caíram muito mais depressa do que jamais sucedera na Europa Ocidental. No Ceilão, para citar um caso extremo mas elucidativo, a malária foi eliminada pelo DDT e a taxa de mortalidade decresceu de 22 para 12 por mil em sete anos – entre 1945 e 1952 (depois das primeiras nebulizações de DDT a taxa de mortalidade desceu de 20 para 14 por mil num único ano, 1946-47) – quebra na taxa de mortalidade que levou setenta anos para se consumar na Inglaterra. Nas Maurícias a queda de 27 para 15 mortes por mil, efetuada em cem anos na Inglaterra, realizou-se também em apenas sete anos. Esta súbita baixa na taxa de mortalidade, combinada com o fato de que alguns países subdesenvolvidos não se encontravam preparados para as mudanças culturais características da Revolução Industrial clássica – em especial no referente ao controle dos nascimentos – causou aumento dramático do "fosso demográfico". Tomemos de novo o Ceilão como exemplo, o brusco declínio da mortalidade não foi acompanhado por quedas dignas de apreço na natalidade que se manteve acima dos 40 por mil. Com uma taxa de natalidade "agrícola" e uma taxa de mortalidade "industrial", a explosão demográfica tendeu a assumir níveis alarmantes.

Voltemo-nos para o segundo exemplo. Ao colocar o homem como um dos elementos fundamentais do processo produtivo, a história econômica está interessada não só no número total de indivíduos mas, sobretudo, no conhecimento da estrutura demográfica populacional. De grande interesse, entre outros, estão os dados referentes à partição segundo os sexos e faixas etárias; esperança de vida e período médio da atividade produtiva; tamanho das famílias e causa das mortes.

Tais fenômenos demográficos são condicionados por fatores biológicos e sociais. Tomemos como ilustração a atividade produtiva dos indivíduos.

O homem deixa a atividade produtiva quando o debilitamento de suas capacidades físicas já não lhe permite exercer sua profissão. Mas este abandono pode ser parcial através da passagem a misteres que requeiram menor esforço físico. Nas sociedades primitivas uma série de trabalhos indispensáveis e de fácil consecução eram realizados pelos mais idosos, o mesmo sucedendo em sociedades agrárias tradicionais.

O limite no qual a capacidade física humana começa a revelar-se insuficiente para a execução de atividade produtiva fundamental depende, de um lado do estado biológico da sociedade e do indivíduo, e, por outro, do caráter do trabalho executado. Em consequência, este limite tendia a ser mais baixo nas sociedades de caçadores que nas agrárias e mais baixo na agricultura, comparada com alguns ofícios artesanais.

Tenhamos presente a existência de instituições econômicas, jurídicas, religiosas etc., operando no sentido de limitar o número de dias trabalhados por ano e as horas trabalhadas por dia. Como se vê, a atividade produtiva dos homens resulta da interação entre fatores sociobiológicos e socioinstitucionais. Os fatores sócio-biológicos são antes de tudo a resistência do organismo humano às enfermidades e as possibilidades sociais de luta contra as doenças. Os fatores socioinstitucionais são bastante mais complexos. Tomemos como ilustração os feriados religiosos.

Como é sabido, na Idade Média os dias considerados festivos contavam-se em grande número e sua observância apresentava-se rigorosa. Os feriados assumiam caráter religioso e econômico. Nas condições do monopólio corporativo, entre os meios de evitar a concorrência no âmbito de diferentes mestres do mesmo grêmio estava a estrita regulamentação do tempo de trabalho; assim o monopólio corporativo, interessado no controle do volume da produção, apresentava interesse concorde com o das instituições religiosas no que respeitava à observância das festas religiosas. Já no Renascimento vemos a Reforma a lutar contra o culto dos santos; período no qual as empresas, fora do âmbito dos grêmios, necessitavam força de trabalho abundante para intensificar a produção.

Conclui-se do acima posto que a compreensão dos fatos demográficos ganha clareza apenas quando os integramos no quadro global das sociedades estudadas. Por outro lado, parece evidente a importância do estudo demográfico para o melhor entendimento da história da humanidade. Neste contexto entendemos as palavras de M. Reinhard: "a demografia é mais que informação complementar... ela é uma dimensão da historia."

Quando nos debruçamos sobre o evolver populacional do Brasil é forçoso ter presente não tratarmos de simples repetição dos processos verificados na Europa ou nos países mais desenvolvidos.

A expansão colonialista, o relacionamento colônia-metrópole e a dependência com respeito aos centros hegemônicos internacionais são fatores que tiveram e ainda apresentam consequências demográficas variadas e profundas.

Para nosso período colonial é da maior relevância a existência da economia de exportação – cuja rentabilidade se condicionava pelos preços internacionais – ao lado da de subsistência. Considerada a oferta elástica de terra e a relativa facilidade com que se podia realocar a mão de obra escrava da atividade exportadora para a de subsistência, vê-se como os freios malthusianos ao crescimento vegetativo da população jamais assumiram papel altamente significativo no Brasil.

Por outro lado, as respostas da oferta de gêneros de primeira necessidade podiam ser afetadas pelas condições do mercado e dos preços internacionais para os produtos exportados. Fato a exercer papel fundamental na alocação da força de trabalho, dos recursos produtivos e, sobretudo, nos processos de dispersão e convergência populacionais, influindo decisivamente nos movimentos migratórios internos.

A articulação da economia colonial na economia européia vai, igualmente, condicionar os fluxos imigratórios; tanto de reinóis como da escravaria negra trazida da África.
Outro problema relevante é a existência, para o período colonial, de segmentos populacionais – homens livres, forros e escravos – que apresentaram dinâmica específica. Tais corpos populacionais, distintos dos prevalecentes na Europa, comportaram-se relativamente aos parâmetros demográficos, como grupos distintos.

A compreensão dos processos demográficos brasileiros está a exigir dos estudiosos, não só esforço dirigido no sentido de coleta de dados, mas, igualmente, no de elaboração teórica capaz de integrar tais movimentos em quadro sociológico, histórico, econômico e demográfico original.

Esta é a grande tarefa da demografia histórica brasileira.


NOTAS

(1) O Estado de São Paulo, 15 de Julho de 1975.
(2) Reinhard (M.), Histoire et Démographie, Paris, 1950.
(3) Wagemann (E.), La población en el Destino de los Pueblos, Santiago, 1949.
(4) Braudel (F.), La História y las Ciencias Sociales, Madrid, 1970.
(5) Davis (K.), Human Society, New York, 1949.
(6) Cipolla (Carlo M.), The Economic Hístory of World Population, Penguin Books, 1972.



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