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APONTAMENTOS SOBRE O EVOLVER DA
DEMOGRAFIA HISTÓRICA NO BRASIL*


Para Tito, um amigo que partiu cedo.

Iraci del Nero da Costa



             No correr das últimas quatro décadas nosso conhecimento sobre a história do Brasil viu-se expressivamente enriquecido. Tal desenvolvimento não decorreu apenas da incorporação de novos temas e abordagens, mas, sobretudo, da incorporação desses novos elementos num quadro de revisão das interpretações historiográficas preexistentes, de sorte a dar-se uma efetiva superação de nossos conhecimentos sobre a evolução da sociedade brasileira. Superação esta que ocorreu, pois, no âmbito de avanços articulados e integrados nos planos teórico, metodológico e empírico.

           Não se trata ainda, diga-se desde logo, do estabelecimento de uma nova perspectiva global, de um novo "paradigma";  não obstante, estamos a vivenciar um processo harmônico e organicamente estruturado do qual, certamente, resultará uma visão original e mais rica de nossa formação histórica, a qual, certamente, mostrar-se-á capaz de qualificar e enriquecer interpretações clássicas tais como as propostas por Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e outros construtores de primeira linha de nossa história social e econômica.

            Dentre as novas contribuições para o processo acima delineado ressalta, como da maior importância, a emergência e o amadurecimento dos estudos desenvolvidos na área da demografia histórica; assim, esse campo distingue-se como um dos mais destacados propulsores das renovações aqui lembradas. Com respeito a tal assertiva talvez seja elucidativo atentarmos, embora em termos meramente informativos e genéricos, para o próprio nascimento e afirmação da pesquisa em demografia histórica no Brasil.

Entre os predecessores da demografia histórica podemos apontar Gilberto Freyre que, no prefácio de Casa Grande & Senzala – escrito em Lisboa, em 1931, e revisto em Pernambuco, em 1933 –, já registrava com clareza a relevância da massa documental da qual se serviram, duas décadas depois, os autores aos quais devemos a formulação dos métodos que deram nascimento à demografia histórica. A compreensão acurada das potencialidades carregadas, sobretudo pela documentação eclesiástica, justifica a longa citação extraída do aludido prefácio:
"Outros documentos auxiliam o estudioso da história íntima da família brasileira: inventários (...); cartas de sesmaria, testamentos, correspondências da Corte e ordens reais (...); pastorais e relatórios de bispos (...); atas de sessões de Ordens Terceiras, confrarias, santas casas (...), Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, de que tanto se tem servido Afonso de E. Taunay para os seus notáveis estudos sobre a vida colonial em São Paulo; as Atas e o Registro Geral da Câmara de São Paulo; os livros de assentos de batismo, óbitos e casamentos de livres e escravos e os de rol de famílias e autos de processos matrimoniais que se conservam em arquivos eclesiásticos; os estudos de genealogia (...); relatórios de juntas de higiene, documentos parlamentares, estudos e teses médicas, inclusive as de doutoramento nas Faculdades do Rio de Janeiro e da Bahia; documentos publicados pelo Arquivo Nacional, pela Biblioteca Nacional, pelo Instituto Histórico Brasileiro, na sua Revista, e pelos Institutos de São Paulo, Pernambuco e da Bahia. Tive a fortuna de conseguir não só várias cartas do arquivo da família Paranhos, (...) como o acesso a importante arquivo de família, (...) o do engenho Noruega, que pertenceu por longos anos ao capitão-mor Manuel Tomé de Jesus (...). Seria para desejar que esses restos de velhos arquivos particulares fossem recolhidos às bibliotecas ou aos museus, e que os eclesiásticos e das Ordens Terceiras fossem convenientemente catalogados. Vários documentos que permanecem em mss. nesses arquivos e bibliotecas devem quanto antes ser publicados. É pena – seja-me lícito observar de passagem – que algumas revistas de História dediquem páginas e páginas à publicação de discursos patrióticos e de crônicas literárias; quando tanta matéria de interesse rigorosamente histórico permanece desconhecida ou de acesso difícil para os estudiosos."

           Também a anteceder a afirmação da demografia histórica como disciplina autônoma, coloca-se a monografia de Lucila Herrmann denominada Evolução e estrutura social de Guaratinguetá num período de trezentos anos, datada de fins da década de 1940. Este empreendimento pioneiro – calcado, basicamente, em levantamentos populacionais realizados no período colonial – ficou isolado, não conheceu divulgação imediata e não se viu seguido, de pronto, por produções similares.
A década de 1960 vai conhecer os ensaios pioneiros de Luis Lisanti Filho e Maria Luiza Marcílio, cabendo a esta última a autoria da tese intitulada La ville de São Paulo, peuplement et population (1750-1850) d'après les registres paroissiaux et les recensements anciens‚ texto seminal do qual resultou o reconhecimento, em escala internacional e, sobretudo, em âmbito nacional, da demografia histórica brasileira; dá-se, a contar de sua edição em português, a difusão entre nós dos métodos propostos pelos cientistas franceses criadores deste novo ramo do saber demográfico situado no amplo campo das ciências sociais. Não é exagero dizer que La ville de São Paulo assinalou o surgimento efetivo da demografia histórica no Brasil.
 Ainda nesses momentos iniciais do desenvolvimento da nova disciplina entre nós vêm à luz as obras de Altiva Pilatti Balhana e de Cecília Maria Westphalen, às quais se seguiram as dissertações elaboradas pelo "grupo" do Paraná; em sua Universidade Federal estruturou-se a pós-graduação em demografia histórica da qual resultou a detecção e ordenamento sistemático das fontes paranaenses e uma grande quantidade de pesquisas: a maior concentração existente até os anos 1990. Pela primeira vez, demógrafos historiadores colocaram em xeque a "família extensa" e afirmaram a predominância, entre nós, da família nuclear (formada, tão só, por progenitores e seus filhos). Ali também nasce a descrição sistemática das comunidades de imigrantes, dando-se, concomitantemente, o espraiamento da exploração demográfica a qual não se restringiu apenas a comunidades paranaenses, pois abrangeu localidades situadas em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais.
O decênio de 1970 ver-se-á irrigado por substancial volume de contestações inovadoras votadas a distintas problemáticas e cobrindo novas áreas do território brasileiro. Luiz R. B. Mott volta-se para o Nordeste (Piauí e Sergipe); a ele creditamos o fato de haver questionado abertamente algumas alegações até então tidas como "verdades" inquestionáveis, pensamos aqui no numeroso contingente de pequenos proprietários de cativos, na existência da escravidão na área dominada pela pecuária no Nordeste e na questão do absenteísmo dos proprietários de gado de tal região. Dessa mesma década são as perquirições de Katia M. de Queirós Mattoso e de Stuart B. Schwartz para a Bahia; a monografia de Johildo Lopes de Athayde para Salvador; os frutos dos doutorados de Pedro Carvalho de Mello e de Robert W. Slenes, os quais devotaram particular cuidado à massa de escrava existente no Brasil; tocando a Herbert S. Klein ocupar-se do tráfico negreiro intercontinental. A preocupação com as populações mineiras e a ênfase emprestada aos distintos segmentos populacionais característicos da sociedade colonial brasileira (livres, forros e escravos) marcam as publicações de Donald Ramos e Iraci Costa; já a estrutura de posse dos cativos e a relevância dos "pequenos escravistas" consubstanciam o interesse maior de um pioneiro desses tópicos: Francisco V. Luna, que escrutinou os dados de Minas Gerais. Stuart B. Schwartz, por seu turno, buscou caracterizar a estrutura de posse de escravos existentes na Bahia. A relevância deste assunto levou Francisco V. Luna e Iraci Costa a estendê-lo às áreas de São Paulo e do Paraná.
       Igualmente na década de 1970, os agregados e a família mereceram tratamento especial de Eni de Mesquita Samara – que se ocupou dos agregados e estendeu para a família paulista os resultados concernentes ao Paraná e a Minas Gerais –, de Elizabeth Anne Kuznesof e de Alida Christine Metcalf.
Ao fim do decênio de 1970 e início do seguinte deu-se a extensão dos olhares dos demógrafos historiadores para regiões que permaneciam inexploradas assim como se aplicaram novas abordagens para captar o evolver populacional das áreas contempladas anteriormente. O rol de especialistas, embora longo, não pode ser descurado: Norte (Ciro Flamarion Santana Cardoso); Paraíba (Elza Régis de Oliveira, Diana Soares de Galliza); Goiás (Eurípedes Antônio Funes, Maria de Souza França); Rio de Janeiro (Eulália Maria Lahmeyer Lobo). Clotilde A. Paiva e Beatriz Ricardina de Magalhães versaram sobre Minas Gerais; Horacio Gutiérrez dedicou-se de modo inovador ao Paraná; Maria Nely dos Santos discorreu sobre Sergipe enquanto o Piauí recebeu a atenção de Miridan Brito Knox. Na década de 1980 Elizabeth Darwiche Rabello, Carlos de Almeida Prado Bacellar e Ana Sílvia Volpi Scott empenharam-se em deslindar as distintas facetas das elites paulistas. Nessa última década retomou-se, com base numa perspectiva renovada, em nível qualitativo superior e em termos quantitativos mais sofisticados, a linha aberta por Lucila Herrmann; qual seja, a de se escrever, emprestando-se preeminência aos elementos demográficos e econômicos, a história regional, quase sempre relegada a uns poucos abnegados sem formação acadêmica sofisticada. Em linha científica refinada enquadram-se o projeto de esquadrinhamento sistemático da evolução demoeconômica de Campinas, de Peter L. Eisenberg, os escritos sobre a Bahia de Stuart B. Schwartz e o paradigmático Caiçara, de Maria Luiza Marcílio
A família escrava passa a ser reconhecida no segundo lustro dos anos 1970 e no correr do decênio de 1980. O trabalho de Richard Graham distingue-se como pioneiro. Segue-se artigo de Francisco V. Luna & Iraci Costa  sobre a família escrava em Vila Rica. Logo após veio a lume a importantíssima publicação de Robert W. Slenes sobre a família escrava em Campinas. A partir daí surgem muitos novos ensaios produzidos por Iraci Costa & Horacio Gutiérrez, Alida Christine Metcalf, Iraci Costa & Robert W. Slenes & Stuart B. Schwartz, Gilberto Guerzoni Filho & Luiz Roberto Netto, João Luís R. Fragoso & Manolo G. Florentino, José Flávio Motta, Iraci Costa & Nelson Nozoe, Francisco V. Luna, Ana Sílvia Volpi Scott & Carlos de Almeida Prado Bacellar; neste quadro coloca-se, também, a exposição sobre casamentos mistos devida a Eliana Maria Réa Goldschmidt. 
Nessa mesma quadra de 1980 elaboraram-se novas indagações centradas na família. Maria Sílvia C. Beozzo Bassanezi privilegia a família de colonos do café; Lucila Reis Brioschi disseca genealogias; José Luiz de Freitas contesta o "mito" da família extensa; Katia M. de Queirós Mattoso estuda a família baiana e chega a conclusões análogas às válidas para Minas Gerais, São Paulo e Paraná; Renato Pinto Venancio discute a fundo a questão dos enjeitados; Maria Beatriz Nizza da Silva discorre sobre o sistema de casamentos no Brasil colonial enquanto Linda Lewin dedica tese a este último objeto.
No início dos anos 90 vários projetos estavam em andamento. Alguns itens originais foram propostos (reconhecimento demoeconômico dos não-proprietários de escravos, Iraci Costa; movimentos migratórios de nordestinos, Nelson Nozoe & Eni de Mesquita Samara & Maria Sílvia C. Beozzo Bassanezi; crescimento vegetativo da massa escrava, Horacio Gutiérrez & Clotilde A. Paiva; preço de escravos, Nilce Rodrigues Parreira) e novas áreas são incorporadas (entre outras: Sorocaba, Carlos de Almeida Prado Bacellar; Bananal, José Flávio Motta e Litoral Norte de São Paulo, Ramón V. G. Fernández). Correlatamente, define-se a preocupação com os rumos da demografia histórica brasileira: quais os objetos a enfocar?; não se mostram necessárias tentativas de generalização e de teorização mais consequentes?; como incorporar a nossas indagações áreas e/ou fases cruciais de nossa economia (nordeste açucareiro, zona do café para o segundo meado do século XIX etc.)? 
Nem sempre foi possível, neste texto, seguir estritamente a perspectiva cronológica, pois alguns tópicos viram-se concebidos simultaneamente e/ou interpenetraram-se no tempo. De outra parte, algumas criações das mais expressivas precisam ser "encaixadas" na revisão histórica aqui esboçada, tomo como exemplos a classificação dos setores e ramos de atividades econômicas (de Iraci Costa e Nelson Nozoe), o trabalho de Tarcísio do Rego Quirino sobre os habitantes do Brasil no fim do século XVI, a pesquisa de Carlos Roberto A. dos Santos sobre preços de escravos no Paraná e a obra intitulada Slave life in Rio de Janeiro, 1808-1850, de Mary C. Karash. Enfim, muito poderia ser acrescentado ao elenco aqui arrolado; de outra parte, cumpre lembrar que o encerramos no início dos anos 1990 porque ir avante seria temeroso, pois nos lustros mais recentes procedeu-se à feitura de milhares de dissertações, teses, livros e artigos sobre nossa história demográfica.
Assim, conquanto a descrição acima posta seja sucinta e parcial, parece-nos bastante para revelar o amplo campo abrangido pela demografia histórica e o fato de que se deu no Brasil um verdadeiro transbordamento com relação aos temas estritamente demográficos, vale dizer, por haver grandes lacunas quanto ao conhecimento mais pormenorizado de nosso passado histórico, os demógrafos historiadores brasileiros sentiram-se impelidos a descobrir (redescobrir) e a reescrever (escrever) nossa história econômica, social, das mentalidades, das instituições etc.; destarte, o exame de variáveis demográficas definiu-se como uma larga porta de entrada para a história entendida em todas suas dimensões. Note-se, além disso, que a inexistência, entre nós, de uma história regional solidamente embasada, tem feito com que alguns demógrafos historiadores tomem como sua a tarefa de promovê-la. 
 Muito embora, como visto, nossos demógrafos historiadores tenham estendido seus estudos no espaço, no tempo e no que tange à vasta temática abarcada por nossa disciplina, ainda nos defrontamos com um longo caminho a percorrer nas três dimensões ora aventadas. Assim, existem áreas geográficas pouco estudadas, sobretudo o norte e o nordeste; o século XVI ainda nos escapa bem como o conhecimento mais circunstanciado da segunda metade do século XIX; muitos temas até agora não mereceram nossa atenção e carecemos de perquirições voltadas para a generalização dos achados já revelados. Destarte, não é errôneo afirmar-se que teremos de formular padrões capazes de lançar luz sobre as evidências pontuais já levantadas, seremos compelidos a buscar as regularidades ainda não desveladas assim como caber-nos-á tentar discriminar claramente as causas comuns que se encontram nas raízes dos elementos empíricos já fixados; enfim, até os dias correntes não chegamos a uma visão teórica de conjunto da formação de nossas populações.
Eis, pois, esboçados de maneira concisa – sempre lembrada a limitação e ignorância do autor – os momentos iniciais do desenvolvimento da demografia histórica entre nós. 
Por fim, lembrando que não dirigimos nossa atenção para este ou aquele autor ou para esta ou aquela linha de pesquisa, mas para toda uma geração de demógrafos historiadores, é preciso alertar que alguns temas e muitos autores foram esquecidos nestes apontamentos, fixar u'a memória mais fidedigna deve ser tarefa coletiva, pois o autor isolado pode encaminhar-se para questões que lhe afetam mais de perto e/ou privilegiar colegas e/ou temas que lhe são mais familiares. Desde já, pois, peço escusas pelas impropriedades aqui cometidas, pelas omissões "indesculpáveis" e pelas assim chamadas "injustiças".
         
NOTA
* Este texto baseia-se, largamente, em dois escritos de minha autoria, numa apostila escrita em 1989 – Apontamentos para a história da demografia histórica no Brasil -- e na abertura do artigo intitulado Contribuições da demografia histórica para o conhecimento da mobilidade socioeconômica e geográfica: uma aproximação ao tema, publicado na Revista História (São Paulo). Campi Assis/Franca, UNESP, v. 30, n. 2, p. 381-400, ago/dez 2011.
           
             
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