A ACUMULAÇÃO CAPITALISTA ESTÁ IMPRESSA NA ASSIM CHAMADA "NATUREZA HUMANA"? (1)
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, junho de 2007

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A tarefa de dar resposta para tal questionamento exige muito espaço, pois são muitos os pontos a considerar e diversas as vertentes que se abrem a quem pretenda enfrentá-la. Nunca o fiz de modo sistemático, por isso, de sorte a tornar mais inteligível um discurso ora feito pela primeira vez e certamente caótico, vou enumerar minhas ponderações sobre o tema.
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1. Afirme-se desde logo, independentemente do reconhecimento ou não de uma "natureza humana", que parece ser interessante para a espécie a conservação da grande diversidade de formas de ser apresentadas pelos humanos. Em termos bem simples, e sem qualquer compromisso com a ciência, a coisa poderia ser dita da seguinte maneira: "interessa à espécie garantir sua 'biodiversidade', garantir a existência e permanência do maior número possível de 'genes' aos quais possam dever-se atitudes as mais distintas". Enfim, a espécie precisa ter seus "Maníacos do Parque"; caso não carregássemos todas as taras por nós portadas, seríamos incapazes de desenvolver muitas ações úteis e desejáveis. Ou seja, caso não houvesse em alguns de nós uma "carga genética" capaz de tornar tais pessoas menos sensíveis à dor de terceiros não existiriam cirurgiões nem enfermeiras prontos a nos cortar e causar dor quando necessário. O problema todo repousa num fato simples e irrecorrível: as cargas genéticas recebidas por cada um de nós não são homogêneas nem balanceadas, pois as recebemos como um lote mais ou menos aleatório, daí os excessos representados por pessoas como o Maníaco. E aqui se define um primeiro ponto a considerar: há excessos os quais têm de ser controlados, circunscritos e inibidos. Assim, enquanto a maioria da população não estiver disposta a adotar uma norma proibindo a existência da propriedade privada sobre os meios de produção, o socialismo será impossível e a probabilidade de recaídas – como as observadas na ex-URSS e seus satélites – será muito alta. De outra parte, a proposição "quem não trabalha não come" já é um elemento ponderável de compulsão largamente aceito, embora ainda não haja concordância universal com respeito à definição inequívoca do conceito de "trabalho".
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2. F. Engels e K. Marx, de certa maneira, fugiram da questão em epígrafe. Para Engels, mais cauteloso, as pessoas sob o socialismo e sob o comunismo resolverão as questões a seu modo (modo esse impossível de ser previsto) e rirão muito de tudo aquilo que dissermos hoje sobre as maneiras segundo as quais elas deverão agir num futuro cujas condições fogem a uma plena compreensão de nossa parte. Marx foi mais longe e negou a existência de uma "natureza humana", afirmou ser o homem um feixe de relações, negando assim a existência de uma natureza humana, natureza essa a qual poderia levar o homem a querer acumular dinheiro (ou que o induziria a estabelecer relações mercantis, como proposto por Adam Smith). Para Marx todas as volições humanas são mediadas pela sociedade, definem-se como um produto cultural e não natural; ademais, na medida em que são produtos culturais, são amoldáveis, são socialmente plasmáveis. Por fim, cabe lembrar que, para o autor em tela, no socialismo e no comunismo o resultado do trabalho seria tido pelo trabalhador como a expressão de sua subjetividade e, por isso, ver-se-ia ele estimulado a ser produtivo e eficiente. Segundo penso, existem argumentos (abaixo os explicito) os quais reforçam algumas dessas postulações de Marx.
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3. Ainda neste plano introdutório faz-se necessário lembrar os dois momentos distinguidos pelos teóricos do marxismo quando se pensa numa sociabilidade pós-capitalista: o socialismo (...a cada um segundo o seu trabalho) e o comunismo (...a cada um segundo suas necessidades). No socialismo este elemento material de compensação pelo "esforço" despendido no processo produtivo estaria plenamente presente na forma de pagamento pecuniário; assim, as pessoas mostrar-se-iam interessada em se tornarem mais produtivas e eficientes, muito embora não pudessem utilizar essas capacidades para deter a propriedade privada sobre os meios de produção. "Construir" um homem apto a viver no comunismo colocar-se-ia, por seu turno, como tarefa a ser cumprida pela sociedade. Resta saber se temos um instrumental "genético e psíquico" capaz de facilitar tal "construção"; a meu juízo, a resposta a tal questão é afirmativa e arrolo abaixo alguns argumentos embasadores dessa minha postura.
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4. Antes de ir adiante cabe perguntar se não estamos dando um valor muito grande à idéia segundo a qual os homens "por sua natureza" são levados ao capitalismo. Enfim, se o homem, por sua natureza, almeja compensações, é preciso verificar se tais compensações têm, necessariamente, de ser de ordem "material" e na forma de capital. Há elementos para supor que tal necessidade não se impõe.
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5. Eu pergunto: quanto ganha um poeta para fazer (da melhor maneira possível) suas poesias? A compensação derivada delas, não sendo pecuniária, tem, para nosso vate, um caráter "material" ou "subjetivo"? Os sociólogos estudam esse tema. Para eles existem formas não pecuniárias de compensação altamente perseguidas pelos homens. Weber discutiu o tema em termos de "vocação". Assim, como diziam nossos pais e avós, o encanador alemão é eficiente porque ele despende todo seu esforço (e se sente recompensado com isso) a fim de ser considerado (e considerar-se) um trabalhador prestimoso. Para alguns marxistas esses "alemães" interiorizaram o modo de produção capitalista, poupando ao dono do capital a tarefa de controlar a produção, pois o selo de garantia é dado pelo próprio operário o qual é (sente-se) incapaz de ferir os altos critérios de qualidade por ele mesmo esposados. Esta forma de "pagamento" distingue-se como algo muito poderoso e mobiliza as capacidades humanas; eu senti isso em mim quando era desenhista, pois tentava efetuar minhas atribuições da maneira a mais perfeita possível apenas para me comprazer com o resultado de meu trabalho e ser considerado um desenhista habilidoso; isso era tão forte que um integrante de minha banca de livre-docência – arquiteto e historiador da FAU com o qual eu havia trabalhado – , na sua argüição, fez uma observação em nada relacionada com o momento: "O Iraci foi o melhor desenhista que conheci"; para ele, de certa forma, as qualidades do "melhor desenhista" viam-se transportadas para a tese, em demografia histórica, atestando a superior qualificação de seu autor! Uma outra forma bizarra de "pagamento" não pecuniário lembrada pelos sociólogos está na associação do nome do cientista a algum fenômeno por ele descoberto (número de Avogadro, Lei de Boyle, Efeito Pigou etc. etc.); segundo esses sociólogos trata-se de uma forma de recompensar o trabalho dos cientistas e estimulá-los a socializar suas descobertas e inventos. Os capitalistas já se servem de tais formas de "pagamento" em larga escala; toda essa onda de valorização do empregado prende-se a isso, parece-me algo asqueroso (porque a serviço da exploração), mas os administradores perceberam que a empresa, concebida como uma grande e fraternal família, tem seus lucros aumentados!
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6. Os antropólogos lembram a crítica social como um forte estímulo à padronização de ações. Particularmente, eles dão importância ao riso, tido como uma forma de crítica social ao desvio. Assim, se um pessoa tropeça somos levados a rir; para os antropólogos esse riso é uma crítica que "a espécie" faz à pessoa desajeitada ("não apta"). Entre os índios o riso é um forte inibidor de ações desviantes, assim, em muitos casos basta a comunidade rir da atitude de um índio para que ele amolde seu comportamento ao padrão privilegiado pelo grupo. Como se vê, a crítica e a pressão da sociedade são fatores de enquadramento muito fortes e presentes em quase todas nossas ações e atividades. Eu costumava perguntar aos meus alunos: quantas vezes vocês já viram um indivíduo entrar pelado num velório, subir no caixão e começar a tocar guitarra? Enfim, existe um conjunto de comportamentos e hábitos passados às crianças no processo de socialização que se fixam de maneira indelével em suas "personalidades" de sorte a não ser necessária nenhuma repressão externa a fim de vê-los respeitados (trata-se dos "mores"). Tais exemplos, evidenciam, segundo penso, a existência de um instrumental posto à disposição da humanidade e poderoso o bastante para conduzir as ações das pessoas de modo a fazer com que elas não vejam a recompensa, pretensamente impressa na "natureza humana", como algo a ser medido, necessariamente, em termos monetários.
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7. Outro problema a considerar é o da própria produtividade e eficiência, valores desejáveis, mas, se tomados de modo absoluto, passíveis de reparos. Em outros termos, até que ponto uma sociedade socialista ou comunista tem de privilegiá-los de maneira a, eventualmente, colocá-los acima da preocupação com o atendimento das necessidades básicas de toda a população? Em outros termos: a busca pela eficiência e por aumentos da produtividade é conduzida, no capitalismo, pelo valor de troca visando-se à maximização dos lucros; já no pós-capitalismo, o condutor será o valor de uso dos bens, procurando-se garantir o bem-estar das pessoas. Assim, embora a excelência seja sempre desejável, não se pode perder de vista a consideração e qualificação dos objetivos perseguidos.
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8. Contemplemos agora a idéia de "natural". Dizer que algo é natural e, por sê-lo, dar a discussão por encerrada representa, a meu ver, uma postulação ideológica devida aos positivistas. Para um hegeliano, justamente por ser natural, a coisa tem de ser negada, pois nosso plano de existência, o cultural, é eminentemente antinatural. O homem só se erige como tal a contar do momento em que coloca em questão a natureza, não se pretende como advertia Marx negar a natureza, mas superá-la. Para Hegel superar a natureza significa entender a necessidade: "a liberdade é o conhecimento da necessidade"; ou seja, eu não me "liberto" da força da gravidade atirando-me de um prédio e batendo os braços, mas sabendo (conhecendo) as fórmulas que regem a gravidade e criando um mecanismo (avião, dirigível, foguete etc.) capaz de superá-la. No caso em pauta, é preciso ter presente que o espírito é capaz de criar meios (antinaturais) de convivência humana aptos a dispensarem a presença do capital; enquanto não fizermos isso seremos presas do capitalismo. Assim, contrariamente ao que pensavam os primeiros marxistas, o salto para o socialismo não se dará de modo "natural" nem necessário, mas será fruto da vontade (do espírito) dos homens.
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"Ao proporem uma nova forma de sociabilidade, socialistas e comunistas prenderam-se, basicamente, à questão da distribuição do produto deixando de lado a discussão das formas a adotar para se efetuar a alocação de recursos e fatores e para se promover a produção. Neste sentido pode-se afirmar que as propostas das esquerdas têm-se cingido à apresentação de formas mais equânimes de se distribuir a produção efetuada, não podendo ser vistas, portanto, como soluções econômicas integradas e orgânicas, pois lhes falta, justamente, uma vertente essencial, qual seja a concernente à produção propriamente dita, a qual, no capitalismo, como tudo o mais, é automática e imediatamente resolvida pelo funcionamento da assim chamada 'lei do valor'. Na sociedade 'pós-capitalista' não se dá (dará) o mesmo. Ademais, os paradigmas empiricamente adotados pelas nações do Leste Europeu que conheceram o socialismo real e que se encontravam calcados, sobretudo, na experiência proporcionada pela Revolução Industrial e nas técnicas e métodos adotados pelos países ocidentais na primeira metade do século XX mostraram-se absolutamente insuficientes para promover um crescimento econômico harmônico, consistente e auto-sustentável. Por outro lado, o asfixiante e totalitário sistema político brutalmente imposto tornou o assim chamado socialismo real absolutamente inaceitável pelas populações e nações por ele vitimadas. Destarte, de 'positivo', as aludidas sociedades do Leste Europeu conheceram, tão-só, uma política de pleno emprego que esboroou e práticas assistencialistas que foram descontinuadas.
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"Pois bem, a 'falha' estaria na 'omissão', na falta de soluções conscientemente formuladas aptas a oferecer uma visão integrada e orgânica da nova economia e a indicar o caminho da construção de uma sociedade na qual imperariam, na mais alta escala possível, a liberdade e a democracia. Mas, e aqui enfrentamos a segunda questão acima colocada, por que tais soluções não têm o caráter natural das que vigoram sem planejamento maior na sociedade capitalista?

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"Para responder a tal pergunta é preciso partirmos de considerações respeitantes à maneira de ser da natureza. Como sabido, a natureza não 'opera' com base em valores, pois só é movida por 'fatos'. Não atende a necessidades (ou vontades), mas responde mecanicamente a forças. No plano natural imperam, pois, tão-somente, forças materiais. Nesse plano não existem, como avançado, arranjos, ajustamentos, ou 'soluções' (resultados) em que estejam presentes valores éticos ou morais, os quais são específicos da vida em sociedade e decorrem da ação consciente dos homens, do movimento do espírito.
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"Assim, por exemplo, no plano dos objetos estudados pela física e pela química todas as interações ¾ aí incluídas tanto a permanência como as mudanças ¾ dão-se em decorrência da existência e atuação de forças natural e materialmente dadas. A esfera da vida natural é dominada pela força física e pela capacidade de adaptação regida, basicamente, por fatores aleatórios mecanicamente 'trabalhados' por forças naturais 'cegas', puramente objetivas, vale dizer, que não atuam como sujeito. Assim, na vida natural estamos, sempre, em face de resultantes do processo de seleção, nos defrontamos, apenas, com 'sobreviventes', nunca com 'criações bem sucedidas'.
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"No plano social naturalmente dado também atuam forças igualmente 'cegas'. Tomemos a remuneração do fator trabalho, questão crucial para o pensamento de esquerda. Seja pela vertente marxista, seja pela teoria econômica neoclássica, tal remuneração determina-se, integralmente, no plano dos fatos: para aqueles, pelo tempo médio de trabalho socialmente necessário; para os últimos, pelo valor monetário da produtividade física marginal.
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"De outra parte, o reconhecimento de que existem 'necessidades' que não seriam atendidas pelo salário e alguns bens e serviços que não podem ser supridos pelo livre jogo das forças de mercado leva, na sociedade capitalista, à implementação de políticas compensatórias e ao fornecimento, sob responsabilidade do Estado, daqueles bens e serviços. A distribuição do produto automaticamente efetuada pelas "leis de mercado" tem, pois, de ser complementada ('corrigida', 'retificada') pela ação política de caráter redistributivo. Evidencia-se, assim, a limitação do 'natural' e a necessária emergência do 'cultural' ou 'antinatural' caso a sociedade pretenda, subjetivamente (politicamente), ir além do que é dado naturalmente." (2)
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Não creio que as questões postas acima tenham sido discutidas com a necessária profundidade pelos pensadores de esquerda. A meu ver algumas delas nem sequer foram abordadas.
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De outra parte, o homem não pode ser considerado um "animal" estritamente cultural; a cultura atua como mediação entre uma "natureza humana" de caráter puramente animal e as ações e volições reveladas pelo homem. Vale dizer, o homem não porta, como queria Adam Smith, um "instinto de troca" que o leva a produzir mercadorias e a trocá-las. Não obstante isso, é inegável que a "competição" está impressa de modo definitivo em qualquer animal, aliás ela nos precede, pois somos fruto de uma corrida dos espermatozóides em busca do óvulo. De certa maneira, a própria "acumulação" também se faz presente, tanto em termos físicos (eu posso acumular gordura) como em termos subjetivos, pois o que nos separa dos demais animais não é a exploração (as formigas prendem uma espécie de inseto para usufruírem de uma forma de melaço que eles produzem), não é a produção (as formigas plantam uma espécie de fungo) nem a acumulação (as abelhas e alguns animais que enfrentam o frio o fazem, assim como os ursos e peixes que acumulam gordura), enfim o que nós acumulamos é conhecimento e é isso que nos distingue das demais espécies cujo processo de acumulação de "conhecimento" se dá em termos da seleção natural e não como processo consciente. Como anotou A. Kojève interpretando Hegel: "Se o animal muda, se ele se ultrapassa, sua consciência-de-si, em vez de estender-se, se anula; ele se torna nada: morre ou desaparece tornando-se um outro animal (a evolução biológica não é histórica). Por isso é que, para Hegel, o animal não tem consciência-de-si, mas apenas um sentimento-de-si. A consciência-de-si que caracteriza o homem é necessariamente uma consciência que sempre se estende ou se transcende". Já o homem pode se negar – acumular conhecimento – sem se destruir, pois o novo conhecimento é acrescentado ao seu estoque de saber sem levar à negação da espécie. Pois bem, tudo isso é verdade, temos a "concorrência" e a "acumulação" decalcadas tanto em nossa formação física como psíquica. Mas, e aqui está a pergunta central, tal fato nos condena inescapavelmente a uma vivência social em que o "meu" e o "eu" se confundam? Não creio, mais ainda, acho que somos uma espécie "jovem" demais e com muito pouca experiência para respondermos que a acumulação na forma de capital perpetuar-se-á.
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A própria idéia do "eu" é nova demais. Sobre este tema também devemos a Marx uma observação muito perspicaz. Segundo ele, o reconhecimento do "eu" (reconhecimento de si como indivíduo destacado dos demais) deve-se à propriedade privada (pessoal e exclusiva); segundo ele, para ser possível ao homem destacar-se do grupo, foi necessário que o homem "objetivasse" tal separação, o que se dá quando ele diz "isto é meu", ao fazê-lo, ele diz, concomitantemente, "isto não é de mais ninguém"; ou seja, ao afirmar-se como dono único de algo, o homem se destaca do grupo e, deixando de se reconhecer exclusivamente como pessoa vinculada a um grupo, passa a se ver como um indivíduo isolado de todo o restante da comunidade e do universo. Assim, a própria possibilidade de emergência do conceito de individuo está calcada, para Marx na existência da propriedade privada. Talvez seja este o papel mais revolucionário desempenhado pela propriedade privada, sem sua existência, talvez continuássemos a nos ver como pessoas integrantes de um grupo, incapazes de nos sentirmos como algo destacado da nossa comunidade. Mas, dado este passo, será possível uma "reconciliação" com o grupo (agora transformado em sociedade) de sorte a que não impere a identificação imediata entre o "eu" e o "meu"? Creio que sim. Aliás, a idéia de acumular capital me parece tão imbecil (e vai aqui uma limitação minha) que a meu ver o capitalista não está preocupado com a acumulação em si, mas vê na acumulação um bom índice para mensurar sua capacidade e sagacidade. De toda sorte, a acumulação de capital não será pouco, muito pouco, para satisfazer espíritos um pouco mais sofisticados?
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9. Creio que podemos estabelecer, sempre provisoriamente, algumas conclusões lógicas do acima posto.
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A. A idéia de associar o socialismo com a felicidade para a humanidade (para toda a humanidade) não me parece sustentável, pois não será necessário percorrer muitos consultórios de psicanalistas para encontrarmos vários exemplares de pessoas que se sentem profundamente infelizes com a felicidade alheia. Assim, exigir uma felicidade universal significa exigir o impossível.
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B. De toda sorte, "se pensarmos uma sociedade na qual se deseje ver promovida, sem nenhuma mediação, a distribuição da produção de acordo com as necessidades de cada um de seus integrantes (e é isto que os comunistas alegam querer), seremos obrigados a admitir que seus pressupostos são: 1) tal sociedade tem de se erigir com base na negação da propriedade privada sobre os meios de produção, já que não pode haver, por hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços e sua distribuição; 2) essa sociedade tem de ser 'pensada', projetada, antes de existir concretamente, pois, como vimos, a natureza é incapaz de instituí-la, de produzi-la; aliás, pelo contrário, o que se produziu 'naturalmente' foi justamente a propriedade privada sobre os meios de produção, óbice maior à instituição da aludida sociedade almejada pelos comunistas; 3) como visto, tal sociedade não é um produto da natureza, mas algo antinatural, decorrente da vontade dos homens (do espírito, da cultura); não traz em si, portanto, os elementos necessários à sua reprodução (re-posição), pois, se o for, será 'colocada' (posta) pelo espírito e por ele terá de ser re-colocada; a ele, portanto, caberá a função de sustentá-la. Dessa forma, tanto sua existência como sua persistência (subsistência) derivarão da vontade dos homens, de sua tensão em mantê-la. Não há, portanto, nenhuma razão de ordem natural para que ela venha a existir ou permaneça existindo." (3)
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C. Admitindo que:
1. existe um algo chamado natureza humana;
2. é próprio da natureza humana exigir recompensas materiais e simbólicas;
3. ainda não existem recompensas materiais ou simbólicas superiores às propiciadas pelo capitalismo;
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Tem-se que:
4. os adeptos do socialismo (que os há) não se mostrarão capazes de formular propostas que levem ao estabelecimento de recompensas superiores às do capitalismo e neste caso ficará evidenciado que o socialismo é natural e necessariamente impossível.
ou:
5. os adeptos do socialismo chegarão à desejada formulação de recompensas mais substanciais do que as proporcionadas pelo capitalismo e neste caso o socialismo terá oportunidade de se estabelecer.
6. como é impossível prever-se se prevalecerá a solução 4 ou a 5, é impossível afirmar-se se uma eventual existência do socialismo é viável ou não. Em face disto só nos resta esperar pelo passar do tempo.
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NOTAS
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(1) Este escrito guarda um tom informal, pois se trata, de fato, da resposta a uma missiva na qual nos foi proposta a pergunta que o encima. Os argumentos vão apresentados de maneira simples e, certamente, descoordenada, pois nos interessava, sobretudo, arrolar alguns elementos capazes de servirem como pontos de partida para as reflexões a serem desenvolvidas por nosso interlocutor.
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(2) MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. A mercadoria força de trabalho, o capitalismo e a emergência de uma nova forma de sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, número 14, jun. 2004, p. 42-44.
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(3) MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. Op. cit., p. 44.


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REVISITANDO TRÊS "MIRADAS" ESTIMULAN-TES DIRIGIDAS À HISTÓRIA DA HUMANIDADE
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Iraci del Nero da Costa
São Paulo, junho de 2007

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....Quando contrapomos o homem aos demais seres da natureza verificamos que ele é um ser em si, para si (tem consciência de si, de sua existência) e, no plano social, poderá vir a ser por si, vale dizer poderá chegar a "pôr" a vida social, a criar conscientemente formas de sociabilidade e de vivência econômica, comportando-se, portanto, como sujeito e senhor autoconsciente de seu futuro. Há, portanto, um processo histórico e lógico mediante o qual o homem passa da condição de ser em si para a de ser em si e para si e, num último momento, para a condição de ser em si, para si e por si.

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....Correlatamente, quando tomamos a história da humanidade observamos o homem desgarrando-se, destacando-se, a pouco e pouco da natureza. Podemos adotar, pois, uma "mirada" específica e vermos a história da humanidade como o processo de individuação do homem. Os homens deixam de ser meros entes naturais para transformarem-se, ao final de um processo histórico e lógico, em indivíduos cientes de sua condição e que livremente se associam para construir, criar, consciente e deliberadamente a sociedade planejada em que desejam viver. De um ser que se sente e se vê como uma pessoa integrante de um grupo, passa o homem a saber-se como uma individualidade destacada de todo o universo, individualidade que se associa livre e conscientemente com os seus iguais.

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....Uma terceira "mirada" mostrar-nos-ia o homem caminhando do reino da necessidade ao da liberdade. Neste caso ele estaria, num primeiro momento, total e imediatamente entregue aos condicionamentos naturais. Num segundo momento, alargaria seus graus de liberdade mediante a consciência que vai assumindo dos processos em que se insere e mediante a conseqüente atuação consciente que lhe permite definir-se como mediador entre sua própria existência e as condições com as quais se depara. Para, num terceiro momento, alcançar a liberdade plena, que representa a culminância do aludido processo histórico e lógico e que se explicita na emergência efetiva de um homem inteiramente sabedor de seus condicionamentos materiais e, por isto mesmo, capaz de realizar sua plena liberdade à medida que projeta e estabelece, conscientemente, a sociedade na qual deseja viver. Liberdade esta a qual, como queria Hegel, representa o conhecimento (e a adequação) à necessidade, não se pondo, pois, como a realização arbitrária de toda e qualquer volição.

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,,,,As três "miradas" acima descritas definem-se, para mim, como três processos solidários que se condicionam mutuamente (são inter-dependentes) e que se entrecruzam (estão inter-relacionados).

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....Assim, o estabelecimento da propriedade privada embasou, objetivamente, a emergência do conceito de indivíduo, vale dizer, a formulação, conscientemente assumida pelos homens de que cada ser humano distingue-se de tudo o mais, inclusive dos demais humanos. Afirmei, em quadro didático destinado a meus alunos e calcado em autores marxistas: "A propriedade privada leva ao para si (reconhecimento de si), ela é a objetivação do eu individual. Quando digo isto é meu, digo isto não é de mais ninguém, ou seja, reconheço-me como algo distinto e isolado de todos os outros homens, reconheço-me, pois, como indivíduo: único em relação a todos os demais e a tudo o mais (grupo, tribo etc. e objetos - que não são eu, mas são meus). O reconhecimento do EU é mediado pelos objetos (propriedade) e não se dá exclusivamente de maneira abstrata. O EU exterioriza-se (objetiva-se) na MINHA propriedade a qual torna possível que eu me reconheça como INDIVÍDUO: único e isolado de tudo o mais e de todos os demais." (COSTA, 2005).

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....Já a transformação da força de trabalho em mercadoria, além de autonomizar o mundo econômico e lastrear objetivamente a igualdade de todos perante a lei, deu sustentação à universalização da democracia, dos direitos humanos e de cidadania (sobre este tema leia-se: MOTTA & COSTA, 2004).

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....Por seu turno, a crítica do capital e do capitalismo efetuada por Marx instituiu as bases sobre as quais assenta-se a possibilidade de o homem devir um ser por si (com respeito a esta questão veja-se: MOTTA & COSTA, 2000).

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....Estas ponderações justificam, a meu juízo, a interdependência e o inter-relacionamento aludidos acima; servem elas, ademais, para ilustrar as ricas potencialidades analíticas encerradas nas três "miradas" que abrem esta crônica. Aprofundar a leitura da história e das demais ciências sociais com base em tais perspectivas pode representar, pois, o enriquecimento das formulações necessárias a que nos tornemos senhores autoconscientes de nosso futuro.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COSTA, Iraci del Nero da. QUADROS DIDÁTICOS: QUADRO I - Caracterização de alguns modos de produção. São Paulo, 2005, p. 1, mimeografado.
MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. Hegel e o fim da história: algumas especulações sobre o futuro da sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, número 7, dez. 2000, p. 33-54.
MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. A mercadoria força de trabalho, o capitalismo e a emergência de uma nova forma de sociabilidade humana. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, número 14, jun. 2004, p. 32-47.
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