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    O FENÔMENO POLÍTICO E SUA AUTONOMIZAÇÃO
 

Para Nina e Tito, amigos e companheiros.

Iraci del Nero da Costa


         No correr da história da humanidade observou-se o crescente confinamento do político em um espaço social cada vez mais restrito. Tal processo foi acompanhado do correlato atrofiamento das funções desempenhadas pelo político e dos âmbitos por ele ocupados.
Muitas das instituições que regem a vida social representam importantes momentos de tal processo, inclusive a emergência do Estado, dos partidos políticos, dos direitos civis e da cidadania. Por sua vez, a transformação da força de trabalho em mercadoria, que tornou possível a constituição do modo de produção capitalista, significou um salto qualitativo nas relações entre o político e o econômico, pois com o nascimento do capitalismo deu-se a autonomização do econômico vis-à-vis o  político. 
Embora estejamos em face de um contínuo processo de atrofia do político, dado o fato de ser ele acompanhado de uma crescente geração de novas instituições desenhadas para albergar funções e atribuições que se foram objetivando – desgarrando-se, assim, da vida social que aparece num primeiro momento como um todo mais ou menos indiferenciado –, a aparência é a de ocorreu uma expansão dos fenômenos políticos. Na verdade, o político deixou de ser o elemento dominante do todo, deixou de "confundir-se" com o todo, para ocupar espaços institucionais concretos e, portanto, mais limitados e restritos, e, por isso mesmo, mais "visíveis" e facilmente identificáveis. Correlatamente, seu "antigo lugar" passa a ser ocupado por novas esferas da vida social que vão adquirindo crescente "liberdade", culminando por autonomizarem-se; isto se dá tanto com a religião (inicialmente sob a forma de magia) como com a vida econômica.
Em termos simples, pode-se pensar num todo inicial relativamente homogêneo no qual se congregavam, há milhares de anos, o político, o econômico e o religioso (sob a forma de magia), todo este que se vai dividir em âmbitos independentes: o político, o econômico, o religioso, as artes e as ciências. A contar de então a amalgamá-los estão, além de um conjunto numeroso de instituições de variado tipo, as distintas ideologias e "visões de mundo" que permeiam toda a vida social.
Aqui, a analogia puramente formal com o fenômeno da concepção cabe plenamente: de um todo aparentemente uno e indiferenciado desenvolvem-se tecidos e órgãos específicos.
A questão ora focada é amplamente conhecida; assim, Georg Lukács, em sua Estética, de maneira clara e elegante mostrou as relações existentes entre as práticas mágicas e seus desdobramentos: as artes, as religiões e as ciências. Como sabido, as práticas mágicas podem ser vistas como um forma de manipulação das forças naturais e sobrenaturais: a determinadas ações assumidas e/ou preparadas pelo mago corresponderá, necessariamente, uma resposta bem definida das divindades ou forças equivalentes. Este caráter necessário afasta a magia da religião, mas a aproxima do mundo da ciência. Na medida em que se abandona a expectativa de uma resposta infalível e é ela deixada ao arbítrio das deidades, tem-se aberto o caminho para o desenvolvimento das religiões. De outra parte, na medida em que o mundo circundante é impregnado por uma visão antropomórfica, conforme se promove sua antropologização, gera-se o caldo cultural no qual florescerão as artes. Já a desantropomorfização e racionalização da realidade levará à emergência do mundo do conhecimento científico. Eis, pois, como, de um elemento inicial, vimos tornarem-se independentes três dos mais relevantes escaninhos da vida humana.
Ademais, como anotado acima, a transformação da força de trabalho em mercadoria propiciou o surgimento do capitalismo tornando possível a diferenciação entre o político e o econômico. Lembre-se aqui que tanto o escravo como o servo têm de ser politicamente reduzidos a tais condições para, então, servir a seus donos e amos, já no modo de produção capitalista todos são proprietários e, portanto, podem ser definidos como "iguais", livres, e detentores dos mesmos direitos; agora a vida econômica resolve-se no âmbito dos mercados, os quais dependem de um único elemento político que é integralmente impessoal: o respeito estrito à propriedade privada. Viabiliza-se, inclusive, a emergência da economia como ciência autônoma.
Conquanto alguns dos processos aqui descritos mostrem-se irreversíveis, tal propriedade não representa uma característica universal do relacionamento existente entre as várias instâncias e âmbitos em foco. Destarte, se não é razoável imaginar o colapso das ciências e das religiões num conjunto novo de práticas mágicas, o mesmo não se pode dizer das futuras interações do político com o econômico. Alguns autores esposam a ideia segundo a qual uma eventual superação do modo de produção capitalista supõe a subsunção do econômico pelo político; assim, a vida econômica perderia sua relativa autonomia e a ciência econômica deixaria de existir como ramo independente do conhecimento e transformar-se-ia numa espécie de "engenharia econômica". Estaríamos em face, pois, da "reabsorção", em nível absolutamente novo e original, do econômico pelo político.
A esta altura parece interessante assinalar que as lutas político-ideológicas desencadeadas pela derrubada do muro de Berlim e pelo desmantelamento do "socialismo real" travaram-se, justamente, em torno do espaço a ser ocupado pela ação política. Apoiados na desarticulação das forças de esquerda, os ideólogos conservadores, respaldados nas teses e práticas neoliberais, procuraram executar um  movimento com duas facetas inter-relacionadas. O momento ideológico, de cunho positivista, viu-se representado pela "naturalização" do econômico, ou seja, a vida econômica passou a ser definida como um fato natural imediatamente determinado pelas "forças de mercado"; o mercado viu-se, assim, erigido em ente natural ao qual cumpre a solução de todos os problemas econômicos. Em face disso impõe-se o momento empírico, qual seja: a subordinação da vida política aos ditames naturalmente emanados do funcionamento automático dos mercados. Aos agentes políticos cumpriria, neste quadro, desempenhar, tão somente, duas tarefas básicas: de um lado afastar da vida econômica qualquer intervenção Estatal, necessariamente vista como algo artificial e distorcedor do curso normal da "natureza", incluindo-se aí, qualquer veleidade de implementação das assim chamadas "políticas compensatórias" e/ou daquelas desenhadas para proteger os menos privilegiados ou destinadas a corrigir inconcebíveis desvirtuamentos impostos pela ação dos mercados; por outro lado, adotar as medidas institucionais que correspondam, estritamente, à plena operacionalidade dos mercados. Ao eleitor caberia, tão só, escolher os mais capazes de executarem essas duas funções de mordomos do capital. A esse respeito parecem-me paradigmáticas as declarações de Philip Bobbitt (professor da Universidade do Texas e do King's College de Londres; ex-membro da direção do Conselho de Segurança Nacional nos governos de George Bush e Bill Clinton) publicadas na Folha de S.Paulo de 16/11/2003: "É ainda muito cedo para dizer, mas, na minha opinião, o Estado-mercado está começando a se desenvolver e os Estados-nação serão totalmente substituídos por ele. O Estado-mercado tem prioridades diferentes do Estado-nação a que estamos acostumados. Em vez de promover o bem-estar da sua população em troca de impostos e ordem, o Estado-mercado será o menos invasivo possível, e seu objetivo será o de promover as maiores oportunidades para os indivíduos se desenvolverem – e a liberdade comercial será apenas uma dessas oportunidades."
Como sabido, os defensores mais ferrenhos do neoliberalismo, em face dos fracassos que se abateram sobre os governantes que se abalançaram a implementar suas políticas, viram-se obrigados a recuo estratégico. Alguns mostram-se desenxavidos e albergam-se em estratégico silêncio, outros procuram o reconfortante aconchego da tese segundo a qual é preciso reconsiderar a validade das velhas políticas compensatórias. 
Segundo parece, o fenômeno político está fadado a enfrentar um grande número de percalços. No século XX não faltaram ditadores totalitários da esquerda e da direita desejosos de eliminá-lo; neste início do XXI, enquanto os esquerdistas recém-convertidos à democracia lutam por mantê-lo vivo, os neoliberais da direita procuraram, sem êxito, sufocá-lo. A nós, aferrados que nos sentimos às utopias humanistas e igualitárias, resta-nos desejar-lhe uma rica, perene e vitoriosa existência.                 





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HEGEL: LEITURAS ALTERNATIVAS

Iraci del Nero da Costa

Neste breve escrito ofereço leituras alternativas para dois temas centrais do pensamento de G. W. F. Hegel. Por um lado, considero as possíveis relações entre Matéria e Razão, por outro, contemplo o relacionamento entre Ser e Conhecer. Apresento um texto condensado e simples cuja intenção básica é meramente didática.


1. MATÉRIA E RAZÃO.

Nós nos encontramos em face de duas posturas ou soluções  alternativas.

1a. Com base em nossa consciência, que a reconhece e chega a conhecê-la mediante o estudo da necessidade, a matéria (que não tem em si nenhum elemento de consciência) chega a tomar conhecimento de sua própria existência. Temos pois: matéria –> consciência tomando conhecimento da necessidade –> a matéria se reconhecendo (com base na consciência) como existente. Neste caso a consciência não se confunde com a matéria, pois representa tão somente a expressão da matéria. Aqui o ser é a matéria, e a razão (consciência) é apenas sua expressão na mente humana. A matéria precede a razão (enquanto consciência), mas é inteiramente regida por leis racionais, e justamente por isso a consciência pode chegar a reconhecer a matéria como o ser. Se optarmos por esta forma de ver o mundo podemos ler  Hegel como se ele fosse um materialista. 
1b. Com base na consciência e nos seus movimentos que vão da aparência à essência, a razão (que num primeiro momento só domina a aparência) chega, com base na crítica dos movimentos (momentos) da consciência, a reconhecer-se como o ser absoluto (vale dizer, absolutamente indeterminado, ou absolutamente determinado por si mesmo). Em outros termos: a razão, criticando os momentos da consciência, se reconhece como a única entidade existente (se reconhece como o ser). Se optarmos por esta forma de pensar o mundo temos de ler Hegel como um idealista, e neste caso estaremos mais próximos do que Hegel pensava de sua própria filosofia. Mas, como anotado abaixo, Hegel "enganou-se" sobre os fundamentos de sua filosofia, a qual, no entanto, pode ser tomada como básica para entendermos o movimento do pensamento (do saber, ou do espírito, se quisermos usar termos paralelos).
 

2. IDENTIDADE ENTRE O SER E O CONHECER.

Para Hegel, o ser é a razão, pois foi a ela que ele chegou observando o que se coloca à nossa volta.
Há duas maneiras de interpretar tal afirmação de Hegel.
2a. Uma idealista, o ser confunde-se com o saber, assim, o subjetivo (saber) iguala-se "ao que haveria fora da consciência" (ser, ou razão); a matéria se esvai e só resta o espírito. Esta é uma maneira de interpretar a afirmação de Hegel segundo a qual o saber se identifica com o ser.
2b. A outra maneira supõe que o ser não se iguala à razão, mas esta última é a expressão, em nosso pensamento, do ser. Nesse sentido o ser não se confunde com o que "existe materialmente", mas o que existe materialmente é "regido" pela razão, não pode fugir à "razão", daí, para Hegel, a razão definir-se como o "ser". Poderíamos dizer que Hegel não considerou que para ser possível chegar-se homem pensante, o universo material que o contém teria de ser estável de sorte a propiciar, com o passar do tempo, a emergência de uma entidade capaz de pensar. Ora, um universo estável tem de estar sujeito a leis rígidas (caso contrário, tornar-se-ia instável, presa do aleatório); destarte, tem de se submeter ao que podemos chamar de lógica estrita, ou razão. Ele viu a "razão" que rege o material e a tomou como o "ser", não percebendo que a matéria é "racional", não podendo ser "substituída" pela razão, a qual, efetivamente, pode ser confundida com o saber. Ademais, pode-se dizer que a "razão" deriva de leis de caráter material (leis que se assentam no material); assim, tais leis (que em conjunto podem ser tomadas como a razão) são uma expressão do material, mas não se confunde (não se iguala) ao material. 
Esta segunda interpretação nos permite ler Hegel como um materialista e não como um idealista (o que, tudo indica, pretendeu ser).
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NOTA SOBRE O LAMENTÁVEL ESTADO DO ENSINO BÁSICO NO BRASIL




Para Tito, amigo dileto.
Iraci del Nero da Costa

Os dirigentes do penúltimo governo ditatorial brasileiro do século passado –  Governo Geisel, 1974-1979 – tomaram como perenes as conjunturas interna e mundial então vigentes as quais se mostravam plenamente favoráveis ao crescimento econômico do país. Achavam, pois, que o desenvolvimento na nação não conheceria solução de continuidade e dar-se-ia, irreversivelmente, segundo taxas elevadas: abriam-se, enfim, as portas para a afirmação de um Brasil Potência. Calcados em tal perspectiva resolveram generalizar alguns serviços públicos até então restritos a parcela relativamente modesta da população nacional.

Nesse quadro, ao qual se seguiram vários lustros de profunda crise econômica, deu-se a universalização dos serviços de saúde, de segurança bem como do ensino de primeiro e segundo graus – correspondentes nos dias correntes aos ensinos fundamental e médio. Tal generalização, no entanto, além de ser largamente afetada pela aludida crise, não foi acompanhada, na área do ensino, de uma política consistente de formação e valorização do professorado. Ademais, faltou, igualmente, a preocupação com a instituição de uma política salarial digna e estimulante assim como a implantação de um programa visando ao estabelecimento de uma infraestrutura apta a garantir aos professores os meios mais adequados e eficientes para a transmissão do conhecimento. Ocorreu, também, a emergência de muitas Universidades, Centros Universitários e Faculdades particulares cujo nível deixa muito a desejar; incapazes, portanto de proporcionar a formação de professores qualificados o bastante para desempenharem suas tarefas com um grau aceitável de proficiência.

A consequência da conjugação de tais fatores materializou-se na deterioração do ensino e na flagrante queda de rendimento do alunato quando comparado com o desempenho dos alunos das escolas públicas do meado do século passado, as quais, embora albergassem um número relativamente pequeno de estudantes, mostravam-se as melhores do país e, em termos genéricos, pudessem ser definidas como excelentes; como sabido, a perspectiva imediata de seus alunos era a de prosseguir sua formação em uma das faculdades ou universidades públicas ou privadas então existentes.   

Ao panorama sombrio delineado acima somou-se a pressão sobre os professores, os quais se viram obrigados a ocupar-se com um número maior de alunos e de aulas.

Por fim, a aprofundar a crise aberta na qual submergia nosso aprendizado, adotou-se, em larga escala, a prática da progressão continuada, a qual só se revela eficiente caso se possa contar com um professorado bem preparado, distinguido por condigna valorização salarial e ao qual se propicie um apoio logístico, em termos físicos, humanos e didáticos, capaz de dar sustentação a um ensino de alto nível.

Infelizmente, como sabido, não é este o caso do Brasil; destarte, a implementação da progressão continuada revelou-se uma verdadeira política de aprovação automática a qual, além de reforçar a degeneração do ensino, ocasionou uma aguda piora do relacionamento entre alunos e professores, vendo-se, estes últimos, desrespeitados e desafiados por uma parcela substantiva de seus discípulos, os quais não os têm como adultos culturalmente superiores, mas como profissionais desqualificados e derrotados econômica e socialmente. Tal postura acarreta, continuamente, casos de confronto verbal e físico entre alunos e seus mestres.

Por seu turno, as autoridades responsáveis pelo ensino mostram-se omissas e inoperantes, como que inteiramente dominadas pelo tamanho incomensurável dos problemas com os quais se deparam.



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APONTAMENTOS SOBRE O EVOLVER DA
DEMOGRAFIA HISTÓRICA NO BRASIL*


Para Tito, um amigo que partiu cedo.

Iraci del Nero da Costa



             No correr das últimas quatro décadas nosso conhecimento sobre a história do Brasil viu-se expressivamente enriquecido. Tal desenvolvimento não decorreu apenas da incorporação de novos temas e abordagens, mas, sobretudo, da incorporação desses novos elementos num quadro de revisão das interpretações historiográficas preexistentes, de sorte a dar-se uma efetiva superação de nossos conhecimentos sobre a evolução da sociedade brasileira. Superação esta que ocorreu, pois, no âmbito de avanços articulados e integrados nos planos teórico, metodológico e empírico.

           Não se trata ainda, diga-se desde logo, do estabelecimento de uma nova perspectiva global, de um novo "paradigma";  não obstante, estamos a vivenciar um processo harmônico e organicamente estruturado do qual, certamente, resultará uma visão original e mais rica de nossa formação histórica, a qual, certamente, mostrar-se-á capaz de qualificar e enriquecer interpretações clássicas tais como as propostas por Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e outros construtores de primeira linha de nossa história social e econômica.

            Dentre as novas contribuições para o processo acima delineado ressalta, como da maior importância, a emergência e o amadurecimento dos estudos desenvolvidos na área da demografia histórica; assim, esse campo distingue-se como um dos mais destacados propulsores das renovações aqui lembradas. Com respeito a tal assertiva talvez seja elucidativo atentarmos, embora em termos meramente informativos e genéricos, para o próprio nascimento e afirmação da pesquisa em demografia histórica no Brasil.

Entre os predecessores da demografia histórica podemos apontar Gilberto Freyre que, no prefácio de Casa Grande & Senzala – escrito em Lisboa, em 1931, e revisto em Pernambuco, em 1933 –, já registrava com clareza a relevância da massa documental da qual se serviram, duas décadas depois, os autores aos quais devemos a formulação dos métodos que deram nascimento à demografia histórica. A compreensão acurada das potencialidades carregadas, sobretudo pela documentação eclesiástica, justifica a longa citação extraída do aludido prefácio:
"Outros documentos auxiliam o estudioso da história íntima da família brasileira: inventários (...); cartas de sesmaria, testamentos, correspondências da Corte e ordens reais (...); pastorais e relatórios de bispos (...); atas de sessões de Ordens Terceiras, confrarias, santas casas (...), Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, de que tanto se tem servido Afonso de E. Taunay para os seus notáveis estudos sobre a vida colonial em São Paulo; as Atas e o Registro Geral da Câmara de São Paulo; os livros de assentos de batismo, óbitos e casamentos de livres e escravos e os de rol de famílias e autos de processos matrimoniais que se conservam em arquivos eclesiásticos; os estudos de genealogia (...); relatórios de juntas de higiene, documentos parlamentares, estudos e teses médicas, inclusive as de doutoramento nas Faculdades do Rio de Janeiro e da Bahia; documentos publicados pelo Arquivo Nacional, pela Biblioteca Nacional, pelo Instituto Histórico Brasileiro, na sua Revista, e pelos Institutos de São Paulo, Pernambuco e da Bahia. Tive a fortuna de conseguir não só várias cartas do arquivo da família Paranhos, (...) como o acesso a importante arquivo de família, (...) o do engenho Noruega, que pertenceu por longos anos ao capitão-mor Manuel Tomé de Jesus (...). Seria para desejar que esses restos de velhos arquivos particulares fossem recolhidos às bibliotecas ou aos museus, e que os eclesiásticos e das Ordens Terceiras fossem convenientemente catalogados. Vários documentos que permanecem em mss. nesses arquivos e bibliotecas devem quanto antes ser publicados. É pena – seja-me lícito observar de passagem – que algumas revistas de História dediquem páginas e páginas à publicação de discursos patrióticos e de crônicas literárias; quando tanta matéria de interesse rigorosamente histórico permanece desconhecida ou de acesso difícil para os estudiosos."

           Também a anteceder a afirmação da demografia histórica como disciplina autônoma, coloca-se a monografia de Lucila Herrmann denominada Evolução e estrutura social de Guaratinguetá num período de trezentos anos, datada de fins da década de 1940. Este empreendimento pioneiro – calcado, basicamente, em levantamentos populacionais realizados no período colonial – ficou isolado, não conheceu divulgação imediata e não se viu seguido, de pronto, por produções similares.
A década de 1960 vai conhecer os ensaios pioneiros de Luis Lisanti Filho e Maria Luiza Marcílio, cabendo a esta última a autoria da tese intitulada La ville de São Paulo, peuplement et population (1750-1850) d'après les registres paroissiaux et les recensements anciens‚ texto seminal do qual resultou o reconhecimento, em escala internacional e, sobretudo, em âmbito nacional, da demografia histórica brasileira; dá-se, a contar de sua edição em português, a difusão entre nós dos métodos propostos pelos cientistas franceses criadores deste novo ramo do saber demográfico situado no amplo campo das ciências sociais. Não é exagero dizer que La ville de São Paulo assinalou o surgimento efetivo da demografia histórica no Brasil.
 Ainda nesses momentos iniciais do desenvolvimento da nova disciplina entre nós vêm à luz as obras de Altiva Pilatti Balhana e de Cecília Maria Westphalen, às quais se seguiram as dissertações elaboradas pelo "grupo" do Paraná; em sua Universidade Federal estruturou-se a pós-graduação em demografia histórica da qual resultou a detecção e ordenamento sistemático das fontes paranaenses e uma grande quantidade de pesquisas: a maior concentração existente até os anos 1990. Pela primeira vez, demógrafos historiadores colocaram em xeque a "família extensa" e afirmaram a predominância, entre nós, da família nuclear (formada, tão só, por progenitores e seus filhos). Ali também nasce a descrição sistemática das comunidades de imigrantes, dando-se, concomitantemente, o espraiamento da exploração demográfica a qual não se restringiu apenas a comunidades paranaenses, pois abrangeu localidades situadas em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais.
O decênio de 1970 ver-se-á irrigado por substancial volume de contestações inovadoras votadas a distintas problemáticas e cobrindo novas áreas do território brasileiro. Luiz R. B. Mott volta-se para o Nordeste (Piauí e Sergipe); a ele creditamos o fato de haver questionado abertamente algumas alegações até então tidas como "verdades" inquestionáveis, pensamos aqui no numeroso contingente de pequenos proprietários de cativos, na existência da escravidão na área dominada pela pecuária no Nordeste e na questão do absenteísmo dos proprietários de gado de tal região. Dessa mesma década são as perquirições de Katia M. de Queirós Mattoso e de Stuart B. Schwartz para a Bahia; a monografia de Johildo Lopes de Athayde para Salvador; os frutos dos doutorados de Pedro Carvalho de Mello e de Robert W. Slenes, os quais devotaram particular cuidado à massa de escrava existente no Brasil; tocando a Herbert S. Klein ocupar-se do tráfico negreiro intercontinental. A preocupação com as populações mineiras e a ênfase emprestada aos distintos segmentos populacionais característicos da sociedade colonial brasileira (livres, forros e escravos) marcam as publicações de Donald Ramos e Iraci Costa; já a estrutura de posse dos cativos e a relevância dos "pequenos escravistas" consubstanciam o interesse maior de um pioneiro desses tópicos: Francisco V. Luna, que escrutinou os dados de Minas Gerais. Stuart B. Schwartz, por seu turno, buscou caracterizar a estrutura de posse de escravos existentes na Bahia. A relevância deste assunto levou Francisco V. Luna e Iraci Costa a estendê-lo às áreas de São Paulo e do Paraná.
       Igualmente na década de 1970, os agregados e a família mereceram tratamento especial de Eni de Mesquita Samara – que se ocupou dos agregados e estendeu para a família paulista os resultados concernentes ao Paraná e a Minas Gerais –, de Elizabeth Anne Kuznesof e de Alida Christine Metcalf.
Ao fim do decênio de 1970 e início do seguinte deu-se a extensão dos olhares dos demógrafos historiadores para regiões que permaneciam inexploradas assim como se aplicaram novas abordagens para captar o evolver populacional das áreas contempladas anteriormente. O rol de especialistas, embora longo, não pode ser descurado: Norte (Ciro Flamarion Santana Cardoso); Paraíba (Elza Régis de Oliveira, Diana Soares de Galliza); Goiás (Eurípedes Antônio Funes, Maria de Souza França); Rio de Janeiro (Eulália Maria Lahmeyer Lobo). Clotilde A. Paiva e Beatriz Ricardina de Magalhães versaram sobre Minas Gerais; Horacio Gutiérrez dedicou-se de modo inovador ao Paraná; Maria Nely dos Santos discorreu sobre Sergipe enquanto o Piauí recebeu a atenção de Miridan Brito Knox. Na década de 1980 Elizabeth Darwiche Rabello, Carlos de Almeida Prado Bacellar e Ana Sílvia Volpi Scott empenharam-se em deslindar as distintas facetas das elites paulistas. Nessa última década retomou-se, com base numa perspectiva renovada, em nível qualitativo superior e em termos quantitativos mais sofisticados, a linha aberta por Lucila Herrmann; qual seja, a de se escrever, emprestando-se preeminência aos elementos demográficos e econômicos, a história regional, quase sempre relegada a uns poucos abnegados sem formação acadêmica sofisticada. Em linha científica refinada enquadram-se o projeto de esquadrinhamento sistemático da evolução demoeconômica de Campinas, de Peter L. Eisenberg, os escritos sobre a Bahia de Stuart B. Schwartz e o paradigmático Caiçara, de Maria Luiza Marcílio
A família escrava passa a ser reconhecida no segundo lustro dos anos 1970 e no correr do decênio de 1980. O trabalho de Richard Graham distingue-se como pioneiro. Segue-se artigo de Francisco V. Luna & Iraci Costa  sobre a família escrava em Vila Rica. Logo após veio a lume a importantíssima publicação de Robert W. Slenes sobre a família escrava em Campinas. A partir daí surgem muitos novos ensaios produzidos por Iraci Costa & Horacio Gutiérrez, Alida Christine Metcalf, Iraci Costa & Robert W. Slenes & Stuart B. Schwartz, Gilberto Guerzoni Filho & Luiz Roberto Netto, João Luís R. Fragoso & Manolo G. Florentino, José Flávio Motta, Iraci Costa & Nelson Nozoe, Francisco V. Luna, Ana Sílvia Volpi Scott & Carlos de Almeida Prado Bacellar; neste quadro coloca-se, também, a exposição sobre casamentos mistos devida a Eliana Maria Réa Goldschmidt. 
Nessa mesma quadra de 1980 elaboraram-se novas indagações centradas na família. Maria Sílvia C. Beozzo Bassanezi privilegia a família de colonos do café; Lucila Reis Brioschi disseca genealogias; José Luiz de Freitas contesta o "mito" da família extensa; Katia M. de Queirós Mattoso estuda a família baiana e chega a conclusões análogas às válidas para Minas Gerais, São Paulo e Paraná; Renato Pinto Venancio discute a fundo a questão dos enjeitados; Maria Beatriz Nizza da Silva discorre sobre o sistema de casamentos no Brasil colonial enquanto Linda Lewin dedica tese a este último objeto.
No início dos anos 90 vários projetos estavam em andamento. Alguns itens originais foram propostos (reconhecimento demoeconômico dos não-proprietários de escravos, Iraci Costa; movimentos migratórios de nordestinos, Nelson Nozoe & Eni de Mesquita Samara & Maria Sílvia C. Beozzo Bassanezi; crescimento vegetativo da massa escrava, Horacio Gutiérrez & Clotilde A. Paiva; preço de escravos, Nilce Rodrigues Parreira) e novas áreas são incorporadas (entre outras: Sorocaba, Carlos de Almeida Prado Bacellar; Bananal, José Flávio Motta e Litoral Norte de São Paulo, Ramón V. G. Fernández). Correlatamente, define-se a preocupação com os rumos da demografia histórica brasileira: quais os objetos a enfocar?; não se mostram necessárias tentativas de generalização e de teorização mais consequentes?; como incorporar a nossas indagações áreas e/ou fases cruciais de nossa economia (nordeste açucareiro, zona do café para o segundo meado do século XIX etc.)? 
Nem sempre foi possível, neste texto, seguir estritamente a perspectiva cronológica, pois alguns tópicos viram-se concebidos simultaneamente e/ou interpenetraram-se no tempo. De outra parte, algumas criações das mais expressivas precisam ser "encaixadas" na revisão histórica aqui esboçada, tomo como exemplos a classificação dos setores e ramos de atividades econômicas (de Iraci Costa e Nelson Nozoe), o trabalho de Tarcísio do Rego Quirino sobre os habitantes do Brasil no fim do século XVI, a pesquisa de Carlos Roberto A. dos Santos sobre preços de escravos no Paraná e a obra intitulada Slave life in Rio de Janeiro, 1808-1850, de Mary C. Karash. Enfim, muito poderia ser acrescentado ao elenco aqui arrolado; de outra parte, cumpre lembrar que o encerramos no início dos anos 1990 porque ir avante seria temeroso, pois nos lustros mais recentes procedeu-se à feitura de milhares de dissertações, teses, livros e artigos sobre nossa história demográfica.
Assim, conquanto a descrição acima posta seja sucinta e parcial, parece-nos bastante para revelar o amplo campo abrangido pela demografia histórica e o fato de que se deu no Brasil um verdadeiro transbordamento com relação aos temas estritamente demográficos, vale dizer, por haver grandes lacunas quanto ao conhecimento mais pormenorizado de nosso passado histórico, os demógrafos historiadores brasileiros sentiram-se impelidos a descobrir (redescobrir) e a reescrever (escrever) nossa história econômica, social, das mentalidades, das instituições etc.; destarte, o exame de variáveis demográficas definiu-se como uma larga porta de entrada para a história entendida em todas suas dimensões. Note-se, além disso, que a inexistência, entre nós, de uma história regional solidamente embasada, tem feito com que alguns demógrafos historiadores tomem como sua a tarefa de promovê-la. 
 Muito embora, como visto, nossos demógrafos historiadores tenham estendido seus estudos no espaço, no tempo e no que tange à vasta temática abarcada por nossa disciplina, ainda nos defrontamos com um longo caminho a percorrer nas três dimensões ora aventadas. Assim, existem áreas geográficas pouco estudadas, sobretudo o norte e o nordeste; o século XVI ainda nos escapa bem como o conhecimento mais circunstanciado da segunda metade do século XIX; muitos temas até agora não mereceram nossa atenção e carecemos de perquirições voltadas para a generalização dos achados já revelados. Destarte, não é errôneo afirmar-se que teremos de formular padrões capazes de lançar luz sobre as evidências pontuais já levantadas, seremos compelidos a buscar as regularidades ainda não desveladas assim como caber-nos-á tentar discriminar claramente as causas comuns que se encontram nas raízes dos elementos empíricos já fixados; enfim, até os dias correntes não chegamos a uma visão teórica de conjunto da formação de nossas populações.
Eis, pois, esboçados de maneira concisa – sempre lembrada a limitação e ignorância do autor – os momentos iniciais do desenvolvimento da demografia histórica entre nós. 
Por fim, lembrando que não dirigimos nossa atenção para este ou aquele autor ou para esta ou aquela linha de pesquisa, mas para toda uma geração de demógrafos historiadores, é preciso alertar que alguns temas e muitos autores foram esquecidos nestes apontamentos, fixar u'a memória mais fidedigna deve ser tarefa coletiva, pois o autor isolado pode encaminhar-se para questões que lhe afetam mais de perto e/ou privilegiar colegas e/ou temas que lhe são mais familiares. Desde já, pois, peço escusas pelas impropriedades aqui cometidas, pelas omissões "indesculpáveis" e pelas assim chamadas "injustiças".
         
NOTA
* Este texto baseia-se, largamente, em dois escritos de minha autoria, numa apostila escrita em 1989 – Apontamentos para a história da demografia histórica no Brasil -- e na abertura do artigo intitulado Contribuições da demografia histórica para o conhecimento da mobilidade socioeconômica e geográfica: uma aproximação ao tema, publicado na Revista História (São Paulo). Campi Assis/Franca, UNESP, v. 30, n. 2, p. 381-400, ago/dez 2011.
           
             
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