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    O FENÔMENO POLÍTICO E SUA AUTONOMIZAÇÃO
 

Para Nina e Tito, amigos e companheiros.

Iraci del Nero da Costa


         No correr da história da humanidade observou-se o crescente confinamento do político em um espaço social cada vez mais restrito. Tal processo foi acompanhado do correlato atrofiamento das funções desempenhadas pelo político e dos âmbitos por ele ocupados.
Muitas das instituições que regem a vida social representam importantes momentos de tal processo, inclusive a emergência do Estado, dos partidos políticos, dos direitos civis e da cidadania. Por sua vez, a transformação da força de trabalho em mercadoria, que tornou possível a constituição do modo de produção capitalista, significou um salto qualitativo nas relações entre o político e o econômico, pois com o nascimento do capitalismo deu-se a autonomização do econômico vis-à-vis o  político. 
Embora estejamos em face de um contínuo processo de atrofia do político, dado o fato de ser ele acompanhado de uma crescente geração de novas instituições desenhadas para albergar funções e atribuições que se foram objetivando – desgarrando-se, assim, da vida social que aparece num primeiro momento como um todo mais ou menos indiferenciado –, a aparência é a de ocorreu uma expansão dos fenômenos políticos. Na verdade, o político deixou de ser o elemento dominante do todo, deixou de "confundir-se" com o todo, para ocupar espaços institucionais concretos e, portanto, mais limitados e restritos, e, por isso mesmo, mais "visíveis" e facilmente identificáveis. Correlatamente, seu "antigo lugar" passa a ser ocupado por novas esferas da vida social que vão adquirindo crescente "liberdade", culminando por autonomizarem-se; isto se dá tanto com a religião (inicialmente sob a forma de magia) como com a vida econômica.
Em termos simples, pode-se pensar num todo inicial relativamente homogêneo no qual se congregavam, há milhares de anos, o político, o econômico e o religioso (sob a forma de magia), todo este que se vai dividir em âmbitos independentes: o político, o econômico, o religioso, as artes e as ciências. A contar de então a amalgamá-los estão, além de um conjunto numeroso de instituições de variado tipo, as distintas ideologias e "visões de mundo" que permeiam toda a vida social.
Aqui, a analogia puramente formal com o fenômeno da concepção cabe plenamente: de um todo aparentemente uno e indiferenciado desenvolvem-se tecidos e órgãos específicos.
A questão ora focada é amplamente conhecida; assim, Georg Lukács, em sua Estética, de maneira clara e elegante mostrou as relações existentes entre as práticas mágicas e seus desdobramentos: as artes, as religiões e as ciências. Como sabido, as práticas mágicas podem ser vistas como um forma de manipulação das forças naturais e sobrenaturais: a determinadas ações assumidas e/ou preparadas pelo mago corresponderá, necessariamente, uma resposta bem definida das divindades ou forças equivalentes. Este caráter necessário afasta a magia da religião, mas a aproxima do mundo da ciência. Na medida em que se abandona a expectativa de uma resposta infalível e é ela deixada ao arbítrio das deidades, tem-se aberto o caminho para o desenvolvimento das religiões. De outra parte, na medida em que o mundo circundante é impregnado por uma visão antropomórfica, conforme se promove sua antropologização, gera-se o caldo cultural no qual florescerão as artes. Já a desantropomorfização e racionalização da realidade levará à emergência do mundo do conhecimento científico. Eis, pois, como, de um elemento inicial, vimos tornarem-se independentes três dos mais relevantes escaninhos da vida humana.
Ademais, como anotado acima, a transformação da força de trabalho em mercadoria propiciou o surgimento do capitalismo tornando possível a diferenciação entre o político e o econômico. Lembre-se aqui que tanto o escravo como o servo têm de ser politicamente reduzidos a tais condições para, então, servir a seus donos e amos, já no modo de produção capitalista todos são proprietários e, portanto, podem ser definidos como "iguais", livres, e detentores dos mesmos direitos; agora a vida econômica resolve-se no âmbito dos mercados, os quais dependem de um único elemento político que é integralmente impessoal: o respeito estrito à propriedade privada. Viabiliza-se, inclusive, a emergência da economia como ciência autônoma.
Conquanto alguns dos processos aqui descritos mostrem-se irreversíveis, tal propriedade não representa uma característica universal do relacionamento existente entre as várias instâncias e âmbitos em foco. Destarte, se não é razoável imaginar o colapso das ciências e das religiões num conjunto novo de práticas mágicas, o mesmo não se pode dizer das futuras interações do político com o econômico. Alguns autores esposam a ideia segundo a qual uma eventual superação do modo de produção capitalista supõe a subsunção do econômico pelo político; assim, a vida econômica perderia sua relativa autonomia e a ciência econômica deixaria de existir como ramo independente do conhecimento e transformar-se-ia numa espécie de "engenharia econômica". Estaríamos em face, pois, da "reabsorção", em nível absolutamente novo e original, do econômico pelo político.
A esta altura parece interessante assinalar que as lutas político-ideológicas desencadeadas pela derrubada do muro de Berlim e pelo desmantelamento do "socialismo real" travaram-se, justamente, em torno do espaço a ser ocupado pela ação política. Apoiados na desarticulação das forças de esquerda, os ideólogos conservadores, respaldados nas teses e práticas neoliberais, procuraram executar um  movimento com duas facetas inter-relacionadas. O momento ideológico, de cunho positivista, viu-se representado pela "naturalização" do econômico, ou seja, a vida econômica passou a ser definida como um fato natural imediatamente determinado pelas "forças de mercado"; o mercado viu-se, assim, erigido em ente natural ao qual cumpre a solução de todos os problemas econômicos. Em face disso impõe-se o momento empírico, qual seja: a subordinação da vida política aos ditames naturalmente emanados do funcionamento automático dos mercados. Aos agentes políticos cumpriria, neste quadro, desempenhar, tão somente, duas tarefas básicas: de um lado afastar da vida econômica qualquer intervenção Estatal, necessariamente vista como algo artificial e distorcedor do curso normal da "natureza", incluindo-se aí, qualquer veleidade de implementação das assim chamadas "políticas compensatórias" e/ou daquelas desenhadas para proteger os menos privilegiados ou destinadas a corrigir inconcebíveis desvirtuamentos impostos pela ação dos mercados; por outro lado, adotar as medidas institucionais que correspondam, estritamente, à plena operacionalidade dos mercados. Ao eleitor caberia, tão só, escolher os mais capazes de executarem essas duas funções de mordomos do capital. A esse respeito parecem-me paradigmáticas as declarações de Philip Bobbitt (professor da Universidade do Texas e do King's College de Londres; ex-membro da direção do Conselho de Segurança Nacional nos governos de George Bush e Bill Clinton) publicadas na Folha de S.Paulo de 16/11/2003: "É ainda muito cedo para dizer, mas, na minha opinião, o Estado-mercado está começando a se desenvolver e os Estados-nação serão totalmente substituídos por ele. O Estado-mercado tem prioridades diferentes do Estado-nação a que estamos acostumados. Em vez de promover o bem-estar da sua população em troca de impostos e ordem, o Estado-mercado será o menos invasivo possível, e seu objetivo será o de promover as maiores oportunidades para os indivíduos se desenvolverem – e a liberdade comercial será apenas uma dessas oportunidades."
Como sabido, os defensores mais ferrenhos do neoliberalismo, em face dos fracassos que se abateram sobre os governantes que se abalançaram a implementar suas políticas, viram-se obrigados a recuo estratégico. Alguns mostram-se desenxavidos e albergam-se em estratégico silêncio, outros procuram o reconfortante aconchego da tese segundo a qual é preciso reconsiderar a validade das velhas políticas compensatórias. 
Segundo parece, o fenômeno político está fadado a enfrentar um grande número de percalços. No século XX não faltaram ditadores totalitários da esquerda e da direita desejosos de eliminá-lo; neste início do XXI, enquanto os esquerdistas recém-convertidos à democracia lutam por mantê-lo vivo, os neoliberais da direita procuraram, sem êxito, sufocá-lo. A nós, aferrados que nos sentimos às utopias humanistas e igualitárias, resta-nos desejar-lhe uma rica, perene e vitoriosa existência.                 





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HEGEL: LEITURAS ALTERNATIVAS

Iraci del Nero da Costa

Neste breve escrito ofereço leituras alternativas para dois temas centrais do pensamento de G. W. F. Hegel. Por um lado, considero as possíveis relações entre Matéria e Razão, por outro, contemplo o relacionamento entre Ser e Conhecer. Apresento um texto condensado e simples cuja intenção básica é meramente didática.


1. MATÉRIA E RAZÃO.

Nós nos encontramos em face de duas posturas ou soluções  alternativas.

1a. Com base em nossa consciência, que a reconhece e chega a conhecê-la mediante o estudo da necessidade, a matéria (que não tem em si nenhum elemento de consciência) chega a tomar conhecimento de sua própria existência. Temos pois: matéria –> consciência tomando conhecimento da necessidade –> a matéria se reconhecendo (com base na consciência) como existente. Neste caso a consciência não se confunde com a matéria, pois representa tão somente a expressão da matéria. Aqui o ser é a matéria, e a razão (consciência) é apenas sua expressão na mente humana. A matéria precede a razão (enquanto consciência), mas é inteiramente regida por leis racionais, e justamente por isso a consciência pode chegar a reconhecer a matéria como o ser. Se optarmos por esta forma de ver o mundo podemos ler  Hegel como se ele fosse um materialista. 
1b. Com base na consciência e nos seus movimentos que vão da aparência à essência, a razão (que num primeiro momento só domina a aparência) chega, com base na crítica dos movimentos (momentos) da consciência, a reconhecer-se como o ser absoluto (vale dizer, absolutamente indeterminado, ou absolutamente determinado por si mesmo). Em outros termos: a razão, criticando os momentos da consciência, se reconhece como a única entidade existente (se reconhece como o ser). Se optarmos por esta forma de pensar o mundo temos de ler Hegel como um idealista, e neste caso estaremos mais próximos do que Hegel pensava de sua própria filosofia. Mas, como anotado abaixo, Hegel "enganou-se" sobre os fundamentos de sua filosofia, a qual, no entanto, pode ser tomada como básica para entendermos o movimento do pensamento (do saber, ou do espírito, se quisermos usar termos paralelos).
 

2. IDENTIDADE ENTRE O SER E O CONHECER.

Para Hegel, o ser é a razão, pois foi a ela que ele chegou observando o que se coloca à nossa volta.
Há duas maneiras de interpretar tal afirmação de Hegel.
2a. Uma idealista, o ser confunde-se com o saber, assim, o subjetivo (saber) iguala-se "ao que haveria fora da consciência" (ser, ou razão); a matéria se esvai e só resta o espírito. Esta é uma maneira de interpretar a afirmação de Hegel segundo a qual o saber se identifica com o ser.
2b. A outra maneira supõe que o ser não se iguala à razão, mas esta última é a expressão, em nosso pensamento, do ser. Nesse sentido o ser não se confunde com o que "existe materialmente", mas o que existe materialmente é "regido" pela razão, não pode fugir à "razão", daí, para Hegel, a razão definir-se como o "ser". Poderíamos dizer que Hegel não considerou que para ser possível chegar-se homem pensante, o universo material que o contém teria de ser estável de sorte a propiciar, com o passar do tempo, a emergência de uma entidade capaz de pensar. Ora, um universo estável tem de estar sujeito a leis rígidas (caso contrário, tornar-se-ia instável, presa do aleatório); destarte, tem de se submeter ao que podemos chamar de lógica estrita, ou razão. Ele viu a "razão" que rege o material e a tomou como o "ser", não percebendo que a matéria é "racional", não podendo ser "substituída" pela razão, a qual, efetivamente, pode ser confundida com o saber. Ademais, pode-se dizer que a "razão" deriva de leis de caráter material (leis que se assentam no material); assim, tais leis (que em conjunto podem ser tomadas como a razão) são uma expressão do material, mas não se confunde (não se iguala) ao material. 
Esta segunda interpretação nos permite ler Hegel como um materialista e não como um idealista (o que, tudo indica, pretendeu ser).
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NOTA SOBRE O LAMENTÁVEL ESTADO DO ENSINO BÁSICO NO BRASIL




Para Tito, amigo dileto.
Iraci del Nero da Costa

Os dirigentes do penúltimo governo ditatorial brasileiro do século passado –  Governo Geisel, 1974-1979 – tomaram como perenes as conjunturas interna e mundial então vigentes as quais se mostravam plenamente favoráveis ao crescimento econômico do país. Achavam, pois, que o desenvolvimento na nação não conheceria solução de continuidade e dar-se-ia, irreversivelmente, segundo taxas elevadas: abriam-se, enfim, as portas para a afirmação de um Brasil Potência. Calcados em tal perspectiva resolveram generalizar alguns serviços públicos até então restritos a parcela relativamente modesta da população nacional.

Nesse quadro, ao qual se seguiram vários lustros de profunda crise econômica, deu-se a universalização dos serviços de saúde, de segurança bem como do ensino de primeiro e segundo graus – correspondentes nos dias correntes aos ensinos fundamental e médio. Tal generalização, no entanto, além de ser largamente afetada pela aludida crise, não foi acompanhada, na área do ensino, de uma política consistente de formação e valorização do professorado. Ademais, faltou, igualmente, a preocupação com a instituição de uma política salarial digna e estimulante assim como a implantação de um programa visando ao estabelecimento de uma infraestrutura apta a garantir aos professores os meios mais adequados e eficientes para a transmissão do conhecimento. Ocorreu, também, a emergência de muitas Universidades, Centros Universitários e Faculdades particulares cujo nível deixa muito a desejar; incapazes, portanto de proporcionar a formação de professores qualificados o bastante para desempenharem suas tarefas com um grau aceitável de proficiência.

A consequência da conjugação de tais fatores materializou-se na deterioração do ensino e na flagrante queda de rendimento do alunato quando comparado com o desempenho dos alunos das escolas públicas do meado do século passado, as quais, embora albergassem um número relativamente pequeno de estudantes, mostravam-se as melhores do país e, em termos genéricos, pudessem ser definidas como excelentes; como sabido, a perspectiva imediata de seus alunos era a de prosseguir sua formação em uma das faculdades ou universidades públicas ou privadas então existentes.   

Ao panorama sombrio delineado acima somou-se a pressão sobre os professores, os quais se viram obrigados a ocupar-se com um número maior de alunos e de aulas.

Por fim, a aprofundar a crise aberta na qual submergia nosso aprendizado, adotou-se, em larga escala, a prática da progressão continuada, a qual só se revela eficiente caso se possa contar com um professorado bem preparado, distinguido por condigna valorização salarial e ao qual se propicie um apoio logístico, em termos físicos, humanos e didáticos, capaz de dar sustentação a um ensino de alto nível.

Infelizmente, como sabido, não é este o caso do Brasil; destarte, a implementação da progressão continuada revelou-se uma verdadeira política de aprovação automática a qual, além de reforçar a degeneração do ensino, ocasionou uma aguda piora do relacionamento entre alunos e professores, vendo-se, estes últimos, desrespeitados e desafiados por uma parcela substantiva de seus discípulos, os quais não os têm como adultos culturalmente superiores, mas como profissionais desqualificados e derrotados econômica e socialmente. Tal postura acarreta, continuamente, casos de confronto verbal e físico entre alunos e seus mestres.

Por seu turno, as autoridades responsáveis pelo ensino mostram-se omissas e inoperantes, como que inteiramente dominadas pelo tamanho incomensurável dos problemas com os quais se deparam.



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