NOTA SOBRE O USO DAS FARINHAS DE MANDIOCA E DE MILHO NO BRASIL ANTIGO


Renato Leite Marcondes
Iraci del Nero da Costa



A farinha de mandioca podia ser substituída pela de milho, chegando, mesmo, a haver uma diferenciação regional de preferências. Comentando a obra de Mawe, escreveu, em 1944, Clado Ribeiro Lessa: "A farinha de milho era usada para misturar com o feijão em Cantagalo e lugares de serra-acima, enquanto a farinha de mandioca tinha a preferência dos moradores do litoral e zonas baixas da província fluminense. ‑‑ Cantagalense é de serra-acima, não gosta de farinha de mandioca; isto é para gente de serra-abaixo, gente de Araruama ‑‑ dizia em família o pai do autor destas notas, natural de Cantagalo. O anotador, que nasceu na cidade do Rio de Janeiro e, pelo lado materno, descende de fluminense de serra-abaixo, precisamente, prefere a farinha de mandioca." (MAWE, 1978, p. 98).

Por volta de 1832, falando sobre São Paulo, asseverava outro viajante: "A principal cultura é o milho, vendo‑se, em compensação, poucas plantações de mandioca. Os habitantes dessa província consideram a farinha de mandioca como malsã, ao passo que, nas províncias do Norte, é a farinha de milho que assim é considerada." (D’ORBIGNY, 1976, p. 178).

Sérgio Buarque de Holanda, por seu turno, em texto dedicado à história de São Paulo e intitulado "Uma civilização do milho" depois de distinguir entre o planalto e a zona litorânea -- "Na região de serra-acima, que em São Paulo corresponde tradicionalmente à área da farinha de milho, -- ao passo que a da mandioca ocupa sobretudo a vertente marítima..." (HOLANDA, 1957, p. 215) --, profere palavras definitivas sobre as aludidas preferências regionais: "Esse extenso inventário dos produtos de milho, que se consumiam em São Paulo e nas áreas de expansão paulista, justifica-se pela importância verdadeiramente dominante que pôde assumir ali a gramínea indígena, durante a fase colonial, comparada a outros gêneros de alimentação. Comparada muito especialmente à mandioca.

"Essa importância é explicável só em parte pelas maiores possibilidades que oferecia ao seu cultivo a área de serra-acima primeiramente ocupada pelo colonizador e que, sobretudo durante o Seiscentos, se converteria no principal núcleo da expansão paulista. Já se fez referência, aqui mesmo, ao fato de a maior parte da farinha-de-guerra, ou mandioca, usada na cidade de São Paulo, até 1782, pelo menos, ser procedente da beira-mar, devido à escassez da sua produção no planalto.

"A outra explicação, todavia, e penso que a decisiva, da preferência dada ao milho sobre a mandioca, há de relacionar-se com a própria mobilidade que, por longo tempo, distinguiu a gente do planalto. Nas primitivas expedições ao sertão bruto seria de todo impraticável o transporte das ramas de mandioca necessárias ao plantio nos arraiais situados onde já não existissem tribos de lavradores. Primeiro porque, além de serem de condução difícil, pois ocupariam demasiado espaço nas bagagens, é notório que essas ramas perdem muito rapidamente o poder germinativo. E depois, porque, feito com êxito o plantio, seria preciso esperar, no mínimo, um ano, geralmente muito mais, para a obtenção de colheitas satisfatórias.

"O milho, por outro lado, além de poder ser transportado a distâncias consideráveis, em grãos, que tomavam pouco espaço para o transporte, oferecia a vantagem de já começar a produzir cinco e seis meses ou menos depois da sementeira." (HOLANDA, 1957, p. 221-222).

De outra parte, a mandioca aparecia como sucedâneo do pão; assim, Mawe, escrevia em 1809: "Jantamos com apetite, mais ou menos às sete horas, galinha assada e mandioca, que substituía o pão. Este último é tão raro nesta região, que a aldeia de Barbacena, muito povoada, não pôde, embora situada no distrito mais abundante em grãos, nos fornecer senão uma rosca." (MAWE, 1978, p. 117). A farinha de milho, por sua vez, também substituía o pão; o mesmo Mawe, já a falar de uma área de Minas Gerais, comentava: "A farinha de milho, alimento principal, me pareceu de tão bom paladar e tão nutritiva que tive a curiosidade de conhecer seu preparo. (...) aqui a empregam como sucedâneo do pão, tão comumente como no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outros lugares, a farinha de mandioca." (MAWE, 1978, p. 139). Referindo‑se à última, escrevia Burmeister em 1851: "Está então pronta a farinha [de mandioca], que é guardada em lugar seco. Este alimento não deve faltar em nenhuma mesa brasileira. No interior, substitui o pão e é servida em bonitas tigelas laqueadas, para ser comida junto com os demais alimentos." (BURMEISTER, 1980, p. 94).

Aliás, como sabido, de ambas estas farinhas fazia‑se o pão. Com respeito ao pão de milho lemos em Mawe: "o Tijuco se abastece em fazendas afastadas várias léguas. O pão era aí extremamente caro. O milho, com que ele é feito..." (MAWE, 1978, p. 158). Já sobre o "pão" preparado com farinha de mandioca e de trigo, diz‑nos Burmeister: “O pão, que se compra na maioria das vendas, é dormido e duro... Há duas espécies, com os nomes pomposos de 'rosca' e 'biscoitos'. O primeiro é feito de farinha de mandioca, à qual se adiciona, de acordo com a exigência, ovos e leite; tem a forma de uma coroa de quatro polegadas de diâmetro. Estas 'roscas' são comidas secas (...) ou com uma bebida, como vinho, aguardente ou café, caso em que são mergulhadas no líquido para amolecer. O 'biscoito' brasileiro é um pão comum de trigo, feito no Rio de Janeiro e remetido para o interior do país. Em geral, não tem paladar, sendo tão duro que não se pode mastigá‑lo. Apresenta, quase sempre, a forma de lua ou de corda, consistindo numa massa comprida enrolada ou em nó." (BURMEISTER, 1980, p. 147).

Saint‑Hilaire ‑‑ francês que aqui esteve de 1816 a 1822 ‑‑ teceu muitas considerações sobre a farinha de milho, delas selecionamos, tão‑só, algumas passagens: "Todos os agricultores plantam milho, não só porque sua farinha substitui o pão..." (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 106). "Sua farinha [de milho] simplesmente moída e separada do farelo, com o auxílio de uma peneira de bambu, toma o nome de fubá. É fazendo cozer o fubá na água, sem acrescentar sal, que se faz essa espécie de polenta grosseira que se chama (...) angu, e constitui o principal alimento dos escravos. [...] Fazem‑se também com a farinha de milho bolos, certo gênero de biscoitos, e mesmo, pequenos pães de gosto agradável, mas de miolo muito compacto. As vezes mistura‑se essa mesma farinha com a de arroz, de centeio ou de trigo, e daí resulta um pão muito menos compacto." (SAINT‑HILAIRE, 1975, p. 107).
Remetemos o leitor interessado nas questões concernentes às espécies vegetais nativas do Brasil ou que aqui vieram a ser aclimatadas aos autores que as trataram com anterioridade: Hans Staden, André Thévet, Pero de Magalhães Gandavo, Padre Fernão Cardim, Ambrósio Fernandes Brandão, Gabriel Soares de Sousa e Jean de Léry.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURMEISTER, Hermann. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: visando especialmente a história natural dos distritos auri‑diamantíferos. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1980, (Reconquista do Brasil: nova série, vol. 23).

D’ORBIGNY, Alcide. Viagem pitoresca através do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1976, (Reconquista do Brasil, vol. 29).

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1957, 334 p., (Coleção Documentos Brasileiros, 89).

MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1978, (Reconquista do Brasil, vol. 33).

SAINT‑HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1975, (Reconquista do Brasil, vol. 4).